DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO
Fragmentos Filosóficos
1947
(Dialektik der Aufklärung – Philosophische Fragmente)
Theodor W. Adorno
&
Max Horkheimer
(Fonte: http://antivalor.vilabol.uol.com.br)
ÍNDICE
Sobre a Nova Edição Alemã .......................................................................................... 1
Prefácio ............................................................................................................................ 2
O Conceito de Esclarecimento ....................................................................................... 5
EXCURSO I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento ........................................................ 23
EXCURSO II: Juliette ou Esclarecimento e Moral ................................................... 40
A Indústria Cultural: O Esclarecimento Como Mistificação das Massas ............... 57
Elementos do Anti-Semitismo: Limites do esclarecimento ....................................... 80
Notas e Esboços ............................................................................................................. 99
CONTRA OS QUE TÊM RESPOSTA PARA TUDO ....................................................................................... 99
CONVERSÃO DA IDEIA EM DOMINAÇAO ................................................................................................ 100
SOBRE A TEORIA DOS FANTASMAS ......................................................................................................... 101
QUAND MÊME .................................................................................................................................................. 102
PSICOLOGIA ANIMAL ................................................................................................................................... 102
PARA VOLTAIRE ............................................................................................................................................. 103
CLASSIFICAÇAO ............................................................................................................................................. 103
AVALANCHA .................................................................................................................................................... 103
ISOLAMENTO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇAO ................................................................................ 104
PARA UMA CRITICA DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA .............................................................................. 104
MONUMENTOS DA HUMANIDADE ............................................................................................................. 106
FRAGMENTO DE UMA TEORIA DO CRIMINOSO ................................................................................... 106
LE PRIX DU PROGRÉS ................................................................................................................................... 108
VÃO ESPANTO.................................................................................................................................................. 108
O INTERESSE PELO CORPO ......................................................................................................................... 108
SOCIEDADE DE MASSAS ............................................................................................................................... 111
CONTRADIÇOES .............................................................................................................................................. 111
MARCADOS ....................................................................................................................................................... 112
FILOSOFIA E DIVISÃO DO TRABALHO .................................................................................................... 113
O PENSAMENTO .............................................................................................................................................. 114
O HOMEM E O ANIMAL................................................................................................................................. 115
PROPAGANDA .................................................................................................................................................. 119
SOBRE A GÉNESE DA BURRICE .................................................................................................................. 120
1
Para Friedrich Pollock
Sobre a Nova Edição Alemã
A “Dialéctica do Esclarecimento” saiu em
1947 pela editora Querido em Amsterdão. O livro,
que só pouco a pouco se difundiu, está há muito
esgotado. Ao reeditá-lo agora, decorridos mais de
vinte anos, não somos movidos apenas pelas
múltiplas solicitações, mas pela crença de que não
poucos dos pensamentos ainda são atuais e têm
determinado em larga medida nossos esforços
teóricos ulteriores. É difícil para alguém de fora
fazer ideia da medida em que somos ambos
responsáveis por cada frase. Juntos ditamos largos
trechos, e a tensão dos dois temperamentos
intelectuais que se juntaram na “Dialéctica” é seu
elemento vital.
Não nos agarramos sem modificações a tudo o
que está dito no livro. Isso seria incompatível com
uma teoria que atribui à verdade um núcleo
temporal, em vez de opô-la ao movimento histórico
como algo de imutável. O livro foi redigido num
momento em que já se podia enxergar o fim do
terror nacional-socialista. Mas não são poucas as
passagens em que a formulação não é mais
adequada à realidade atual. E, no entanto, não se
pode dizer que, mesmo naquela época, tenhamos
avaliado de maneira excessivamente inócua o
processo de transição para o mundo administrado.
No período da grande divisão política em dois
blocos colossais, objectivamente compelidos a
colidirem um com o outro, o horror continuou. Os
conflitos no Terceiro Mundo, o crescimento
renovado do totalitarismo não são meros incidentes
históricos, assim como tampouco o foi, segundo a
“Dialéctica”, o fascismo em sua época. O
pensamento crítico, que não se detém nem mesmo
diante do progresso, exige hoje que se tome partido
pelos últimos resíduos de liberdade, pelas
tendências ainda existentes a uma humanidade real,
ainda que pareçam impotentes em face da grande
marcha da história.
O desenvolvimento que diagnosticamos neste
livro em direcção à integração total está suspenso,
mas não interrompido; ele ameaça se completar
através de ditaduras e guerras. O prognóstico da
conversão correlata do esclarecimento no
positivismo, o mito dos factos, finalmente a
identidade da inteligência e da hostilidade ao
espírito encontraram uma confirmação avassaladora.
Nossa concepção da história não presume estar livre
disso, mas, certamente, não está à cata de
informações à maneira positivista. Crítica da
filosofia que é, não quer abrir mão da filosofia.
Retornámos dos Estados Unidos, onde o livro
foi escrito, para a Alemanha, na convicção de que
aqui poderemos fazer mais do que em outro lugar,
tanto teórica quanto praticamente. Juntamente com
Friedrich Pollock, a quem o livro é agora dedicado
por seus 75 anos, como já o era por seus 50 anos,
reconstruímos o Instituto para Pesquisa Social com
o pensamento de prosseguir a concepção formulada
na “Dialéctica”. No desenvolvimento de nossa
teoria e nas experiências comuns que se seguiram,
tivemos a ajuda, no mais belo sentido, de Gretel
Adorno, como já ocorrera por ocasião da primeira
redacção.
Quanto às alterações, fomos muito mais
parcimoniosos do que o costume na reedição de
livros publicados há mais de uma década. Não
queríamos retocar o que havíamos escrito, nem
mesmo as passagens manifestamente inadequadas.
Actualizar todo o texto teria significado nada menos
do que um novo livro. A ideia de que hoje importa
mais conservar a liberdade, ampliá-la e desdobrá-la,
em vez de acelerar, ainda que indirectamente, a
marcha em direcção ao mundo administrado, é algo
que também exprimimos em nossos escritos
ulteriores. Contentamo-nos, no essencial, com a
correcção de erros tipográficos e coisas que tais.
Semelhante reserva transforma o livro numa
documentação; temos a esperança de que seja, ao
mesmo tempo, mais do que isso.
Frankfurt am Main, abril, 1969.
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer
2
Prefácio
Quando começámos o trabalho, cujas
primeiras provas dedicamos a Friedrich Pollock,
tínhamos a esperança de poder apresentar o todo
concluído por ocasião de seu quinquagésimo
aniversário. Mas quanto mais nos aprofundávamos
em nossa tarefa, mais claramente percebíamos a
desproporção entre ela e nossas forças. O que nos
propuséramos era, de facto, nada menos do que
descobrir por que a humanidade, em vez de entrar
em um estado verdadeiramente humano, está se
afundando em uma nova espécie de barbárie.
Subestimámos as dificuldades da exposição porque
ainda tínhamos uma excessiva confiança na
consciência do momento presente. Embora
tivéssemos observado há muitos anos que, na
actividade científica moderna, o preço das grandes
invenções é a ruína progressiva da cultura teórica,
acreditávamos de qualquer modo que podíamos nos
dedicar a ela na medida em que fosse possível
limitar nosso desempenho à crítica ou ao
desenvolvimento de temáticas especializadas. Nosso
desempenho devia restringir-se, pelo menos
tematicamente, às disciplinas tradicionais: à
sociologia, à psicologia e à teoria do conhecimento.
Os fragmentos que aqui reunimos mostram,
contudo, que tivemos de abandonar aquela
confiança. Se uma parte do conhecimento consiste
no cultivo e no exame atentos da tradição científica
(especialmente onde ela se vê entregue ao
esquecimento como um lastro inútil pelos
expurgadores positivistas), em compensação, no
colapso actual da civilização burguesa, o que se
torna problemático é não apenas a actividade, mas o
sentido da ciência. O que os fascistas ferrenhos
elogiam hipocritamente e os dóceis especialistas da
humanidade ingenuamente levam a cabo, a
infatigável autodestruição do esclarecimento, força
o pensamento a recusar o último vestígio de
inocência em face dos costumes e das tendências do
espírito da época. Se a opinião pública atingiu um
estado em que o pensamento inevitavelmente se
converte em mercadoria e a linguagem em seu
encarecimento, então a tentativa de pôr a nu
semelhante depravação tem de recusar lealdade às
convenções linguísticas e conceituais em vigor,
antes que suas consequências para a história
universal frustrem completamente essa tentativa.
Se se tratasse apenas dos obstáculos
resultantes da instrumentação desmemoriada da
ciência, o pensamento sobre questões sociais
poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida
as tendências opostas à ciência oficial. Mas também
estas são presas do processo global de produção.
Elas não se modificaram menos do que a ideologia à
qual se referiam. Com elas se passa o que sempre
sucedeu ao pensamento triunfante. Se ele sai
voluntariamente de seu elemento crítico como um
mero instrumento ao serviço da ordem existente, ele
tende, contra sua própria vontade, a transformar
aquilo que escolheu como positivo em algo de
negativo, de destrutivo. A filosofia que, no século
dezoito, apesar das fogueiras levantadas para os
livros e as pessoas, infundia um medo mortal na
infâmia,1
sob Bonaparte já passava para o lado
desta. Finalmente, a escola apologética de Comte
usurpou a sucessão dos enciclopedistas
intransigentes e estendeu a mão a tudo aquilo contra
o qual estes se haviam colocado. As metamorfoses
da crítica na afirmação tampouco deixam incólume
o conteúdo teórico, sua verdade volatiliza-se. Agora,
é verdade, a história motorizada toma a dianteira
desses desenvolvimentos intelectuais e os portavozes
oficiais, movidos por outros cuidados,
liquidam a teoria que os ajudou a encontrar um
lugar ao sol, antes que esta consiga prostituir-se
direito.
Ao tomar consciência da sua própria culpa, o
pensamento vê-se por isso privado não só do uso
afirmativo da linguagem conceptual científica e
quotidiana, mas igualmente da linguagem da
oposição. Não há mais nenhuma expressão que não
tenda a concordar com as direcções dominantes do
pensamento, e o que a linguagem desgastada não faz
espontaneamente é suprido com precisão pelos
mecanismos sociais. Aos censores, que as fábricas
de filmes mantêm voluntariamente por medo de
acarretar no final um aumento dos custos,
correspondem instâncias análogas em todas as áreas.
O processo a que se submete um texto literário, se
não na previsão automática do seu produtor, pelo
menos pelo corpo de leitores, editores, redactores e
ghost-writers dentro e fora do escritório da editora,
é muito mais minucioso que qualquer censura.
Tornar inteiramente supérfluas suas funções parece
ser, apesar de todas as reformas benéficas, a
ambição do sistema educacional. Na crença de que
ficaria excessivamente susceptível à charlatanice e à
superstição, se não se restringisse à constatação de
factos e ao cálculo de probabilidades, o espírito
conhecedor prepara um chão suficientemente
ressequido para acolher com avidez a charlatanice e
a superstição. Assim como a proibição sempre abriu
as portas para um produto mais tóxico ainda, assim
também o cerceamento da imaginação teórica
preparou o caminho para o desvario político. E,
mesmo quando as pessoas ainda não sucumbiram a
1
Alusão à expressão com que Voltaire designava a
superstição: “écrasez l’infâme”. (N. T.).
3
ele, elas vêem-se privadas dos meios de resistência
pelos mecanismos de censura, tanto os externos
quanto os implantados dentro delas próprias.
A aporia com que defrontamos em nosso
trabalho revela-se assim como o primeiro objecto a
investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não
alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa
petitio principii – de que a liberdade na sociedade é
inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo,
acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza
que o próprio conceito desse pensamento, tanto
quanto as formas históricas concretas, as instituições
da sociedade com as quais está entrelaçado, contém
o germe para a regressão que hoje tem lugar por
toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de
si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está
selando seu próprio destino. Abandonando a seus
inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do
progresso, o pensamento cegamente pragmatizado
perde seu carácter superador e, por isso, também sua
relação com a verdade. A disposição enigmática das
massas educadas tecnologicamente a deixar
dominar-se pelo fascínio de um despotismo
qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a
paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido
manifesta a fraqueza do poder de compreensão do
pensamento teórico atual.
Acreditamos contribuir com estes fragmentos
para essa compreensão, mostrando que a causa da
recaída do esclarecimento na mitologia não deve ser
buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pagãs e
em outras mitologias modernas especificamente
idealizadas em vista dessa recaída, mas no próprio
esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.
Neste respeito, os dois conceitos devem ser
compreendidos não apenas como histórico-culturais,
mas como reais. Assim como o esclarecimento
exprime o movimento real da sociedade burguesa
como um todo sob o aspecto da encarnação de sua
Ideia em pessoas e instituições, assim também a
verdade não significa meramente a consciência
racional mas, do mesmo modo, a figura que esta
assume na realidade efectiva. O medo que o bom
filho da civilização moderna tem de afastar-se dos
factos – factos esses que, no entanto, já estão pré-
moldados como clichés na própria percepção pelas
usanças dominantes na ciência, nos negócios e na
política – é exactamente o mesmo medo do desvio
social. Essas usanças também definem o conceito de
clareza na linguagem e no pensamento a que a arte,
a literatura e a filosofia devem conformar-se hoje.
Ao tachar de complicação obscura e, de preferência,
de alienígena o pensamento que se aplica
negativamente aos factos, bem como às formas de
pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu
sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o
domínio da mais profunda cegueira. É característico
de uma situação sem saída que até mesmo o mais
honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem
desgastada para recomendar a inovação, adopta
também o aparelho categorial inculcado e a má
filosofia que se esconde por trás dele, e assim
reforça o poder da ordem existente que ele gostaria
de romper. A falsa clareza é apenas uma outra
expressão do mito. Este sempre foi obscuro e
iluminante ao mesmo tempo. Suas credenciais têm
sido desde sempre a familiaridade e o facto de
dispensar do trabalho do conceito.
A naturalização dos homens hoje em dia não é
dissociável do progresso social. O aumento da
produtividade económica, que por um lado produz
as condições para um mundo mais justo, confere por
outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais
que o controlam uma superioridade imensa sobre o
resto da população. O indivíduo vê-se
completamente anulado em face dos poderes
económicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o
poder da sociedade sobre a natureza a um nível
jamais imaginado. Desaparecendo diante do
aparelho a que serve, o indivíduo vê-se, ao mesmo
tempo, melhor do que nunca provido por ele. Numa
situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da
massa aumentam com a quantidade de bens a ela
destinados. A elevação do padrão de vida das
classes inferiores, materialmente considerável e
socialmente lastimável, reflecte-se na difusão
hipócrita do espírito. Sua verdadeira aspiração é a
negação da reificação. Mas ele necessariamente se
esvai quando se vê concretizado em um bem
cultural e distribuído para fins de consumo. A
enxurrada de informações precisas e diversões
assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo
tempo.
O que está em questão não é a cultura como
valor, como pensam os críticos da civilização
Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e outros. A
questão é que o esclarecimento tem que tomar
consciência de si mesmo, se os homens não devem
ser completamente traídos. Não é da conservação do
passado, mas de resgatar a esperança passada que se
trata. Hoje, porém, o passado prolonga-se como
destruição do passado. Se a cultura respeitável
constituiu até ao século dezanove um privilégio,
cujo preço era o aumento do sofrimento dos
incultos, no século vinte o espaço higiénico da
fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos
da cultura num cadinho gigantesco. Talvez isso não
fosse um preço tão alto, como acreditam aqueles
defensores da cultura, se a venda em liquidação da
4
cultura não contribuísse para a conversão das
conquistas económicas em seu contrário.
Nas condições atuais, os próprios bens da
fortuna convertem-se em elementos do infortúnio.
Enquanto no período passado a massa desses bens,
na falta de um sujeito social, resultava na chamada
superprodução, em meio às crises da economia
interna, hoje ela produz, com a entronização dos
grupos que detêm o poder no lugar desse sujeito
social, a ameaça internacional do fascismo: o
progresso converte-se em regressão. O facto de que
o espaço higiénico da fábrica e tudo o que
acompanha isso, o Volkswagen e o Palácio dos
Desportos, levem a uma liquidação estúpida da
metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles
próprios se tornem, no interior do todo social, a
metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se
concentra a desgraça real não é indiferente. Eis aí o
ponto de partida dos nossos fragmentos.
O primeiro estudo, o fundamento teórico dos
seguintes, procura tornar mais inteligível o
entrelaçamento da racionalidade e da realidade
social, bem como o entrelaçamento, inseparável do
primeiro, da natureza e da dominação da natureza. A
crítica aí feita ao esclarecimento deve preparar um
conceito positivo do esclarecimento, que o solte do
emaranhado que o prende a uma dominação cega.
Em linhas gerais, o primeiro estudo pode ser
reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já
é esclarecimento e o esclarecimento acaba por
reverter à mitologia. Nos dois excursos, essas teses
são desenvolvidas a propósito de objectos
específicos. O primeiro acompanha a dialéctica do
mito e do esclarecimento na Odisseia como um dos
mais precoces e representativos testemunhos da
civilização burguesa ocidental. No centro estão os
conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais se
revelam tanto a diferença quanto a unidade da
natureza mítica e do domínio esclarecido da
natureza. O segundo excurso ocupa-se de Kant,
Sade e Nietzsche, os implacáveis realizadores do
esclarecimento. Ele mostra como a submissão de
tudo aquilo que é natural ao sujeito autocrático
culmina exactamente no domínio de uma natureza e
uma objectividade cegas. Essa tendência aplaina
todas as antinomias do pensamento burguês, em
especial a antinomia do rigor moral e da absoluta
amoralidade.
O segmento sobre a “indústria cultural” mostra
a regressão do esclarecimento à ideologia, que
encontra no cinema e no rádio sua expressão mais
influente. O esclarecimento consiste aí, sobretudo,
no cálculo da eficácia e na técnica de produção e
difusão. Em conformidade com seu verdadeiro
conteúdo, a ideologia se esgota na idolatria daquilo
que existe e do poder pelo qual a técnica é
controlada. No tratamento dessa contradição, a
indústria cultural é levada mais a sério do que
gostaria. Mas como a invocação de seu próprio
carácter comercial, de sua profissão de uma verdade
atenuada, há muito se tornou uma evasiva com a
qual ela tenta furtar-se à responsabilidade pela
mentira que difunde, nossa análise atém-se à
pretensão, objectivamente inerente aos produtos, de
serem obras estéticas e, por isso mesmo, uma
configuração da verdade. Ela revela, na nulidade
dessa pretensão, o carácter maligno do social. O
segmento sobre a indústria cultural é ainda mais
fragmentário do que os outros.
A discussão dos “Elementos do Antisemitismo”
através de teses trata do retorno efectivo
da civilização esclarecida à barbárie. A tendência
não apenas ideal, mas também prática, à
autodestruição, caracteriza a racionalidade desde o
início e de modo nenhum apenas a fase em que essa
tendência se evidencia sem disfarces. Neste sentido,
esboçamos uma pré-história filosófica do antisemitismo.
Seu “irracionalismo” é derivado da
essência da própria razão dominante e do mundo
correspondente a sua imagem. Os “Elementos”
estão directamente ligados a pesquisas empíricas do
Instituto para Pesquisa Social, a fundação instituída
e mantida por Felix Weil, sem a qual não teriam
sido possíveis, não apenas nossos estudos, mas uma
boa parte do trabalho teórico dos emigrantes
alemães, que teve prosseguimento apesar de Hitler.
As primeiras três teses foram escritas
juntamente com Leo Löwenthal, com quem desde os
primeiros anos de Frankfurt trabalhamos em muitas
questões científicas.
Na última parte publicam-se notas e esboços
que, em parte, pertencem ao horizonte intelectual
dos estudos precedentes, sem encontrar aí seu lugar,
e em parte traçam um esboço provisório de
problemas a serem tratados num trabalho futuro. A
maioria deles refere-se a uma antropologia
dialéctica.
Los Angeles, Califórnia, Maio, 1944.
O livro não contém nenhuma modificação
essencial do texto tal como concluído ainda durante
a guerra. Só a última tese dos “Elementos do Antisemitismo”
foi acrescentada ulteriormente.
Junho, 1947
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer
5
O Conceito de Esclarecimento
No sentido mais amplo do progresso do
pensamento, o esclarecimento tem perseguido
sempre o objectivo de livrar os homens do medo e
de investi-los na posição de senhores. Mas a terra
totalmente esclarecida resplandece sob o signo de
uma calamidade triunfal. O programa do
esclarecimento era o desencantamento do mundo.
Sua meta era dissolver os mitos e substituir a
imaginação pelo saber. Bacon, “o pai da filosofia
experimental”1
, já reunira seus diferentes temas. Ele
desprezava os adeptos da tradição, que “primeiro
acreditam que os outros sabem o que eles não
sabem; e depois que eles próprios sabem o que não
sabem. Contudo, a credulidade, a aversão à dúvida,
a temeridade no responder, o vangloriar-se com o
saber, a timidez no contradizer, o agir por interesse,
a preguiça nas investigações pessoais, o fetichismo
verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e
coisas semelhantes impediram um casamento feliz
do entendimento humano com a natureza das coisas
e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e
experimentos erráticos; o fruto e a posteridade de
tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar. A
imprensa não passou de uma invenção grosseira; o
canhão era uma invenção que já estava praticamente
assegurada; a bússola já era, até certo ponto,
conhecida. Mas que mudança essas três invenções
produziram – uma na ciência, a outra na guerra, a
terceira nas finanças, no comércio e na navegação!
E foi apenas por acaso, digo eu, que a gente
tropeçou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade
do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele
muitas coisas estão guardadas que os reis, com
todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre as
quais sua vontade não impera, das quais seus espias
e informantes nenhuma notícia trazem, e que
provêm de países que seus navegantes e
descobridores não podem alcançar. Hoje, apenas
presumimos dominar a natureza, mas, de facto,
estamos submetidos à sua necessidade; se contudo
nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a
comandaríamos na prática”.2
Apesar de seu alheamento à matemática,
Bacon capturou bem a mentalidade da ciência que
se fez depois dele. O casamento feliz entre o
entendimento humano e a natureza das coisas que
ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que
vence a superstição deve imperar sobre a natureza
1
Voltaire, Lettres philosophiques X1l, Oeuvres completes.
Ed. Garnier. Paris, 1879. Vol. XXII, p. 118.
2
Bacon, In Parisse of. Knowledge. Miscellaneous Tracts
upon Human Philosophy. The Works of Francis Bacon. Ed.
Basil Montagu. Londres, 1825. Vol. l, pp. 254 sg.
desencantada. O saber que é poder não conhece
nenhuma barreira, nem na escravização da criatura,
nem na complacência em face dos senhores do
mundo. Do mesmo modo que está a serviço de todos
os fins da economia burguesa na fábrica e no campo
de batalha, assim também está à disposição dos
empresários, não importa sua origem. Os reis não
controlam a técnica mais directamente do que os
comerciantes: ela é tão democrática quanto o
sistema económico com o qual se desenvolve. A
técnica é a essência desse saber, que não visa
conceitos e imagens, nem o prazer do
discernimento, mas o método, a utilização do
trabalho de outros, o capital. As múltiplas coisas
que, segundo Bacon, ele ainda encerra nada mais
são do que instrumentos: o rádio, que é a imprensa
sublimada; o avião de caça, que é uma artilharia
mais eficaz; o controle remoto, que é uma bússola
mais confiável. O que os homens querem aprender
da natureza é como empregá-la para dominar
completamente a ela e aos homens. Nada mais
importa. Sem a menor consideração consigo mesmo,
o esclarecimento eliminou com seu cautério o
último resto de sua própria autoconsciência. Só o
pensamento que se faz violência a si mesmo é
suficientemente duro para destruir os mitos. Diante
do actual triunfo da mentalidade factual, até mesmo
o credo nominalista de Bacon seria suspeito de
metafísica e incorreria no veredicto de vacuidade
que proferiu contra a escolástica. Poder e
conhecimento são sinónimos.3
Para Bacon, como
para Lutero, o estéril prazer que o conhecimento
proporciona não passa de uma espécie de lascívia. O
que importa não é aquela satisfação que, para os
homens, se chama “verdade”, mas a “operation”, o
procedimento eficaz. Pois não é nos “discursos
plausíveis, capazes de proporcionar deleite, de
inspirar respeito ou de impressionar de uma maneira
qualquer, nem em quaisquer argumentos verosímeis,
mas em obrar e trabalhar e na descoberta de
particularidades antes desconhecidas, para melhor
prover e auxiliar a vida”, que reside “o verdadeiro
objectivo e função da ciência”.4
Não deve haver
nenhum mistério, mas tampouco o desejo de sua
revelação.
Desencantar o mundo é destruir o animismo.
Xenófanes zombava da multidão de deuses, porque
eram iguais aos homens, que os produziram, em
tudo aquilo que é contingente e mau, e a lógica mais
recente denuncia as palavras cunhadas pela
linguagem como moedas falsas, que será melhor
substituir por fichas neutras. O mundo torna-se o
3
Cf. Bacon, Novum Organum, op. cit. vol. XIV, p. 31.
4
Bacon, Valerius Terminus: Of the lnterpretation of Nature.
Miscelaneous Tracts, op. cit. Vol. l, p. 281.
6
caos, e a síntese, a salvação. Nenhuma distinção
deve haver entre o animal totémico, os sonhos do
visionário e a Ideia absoluta. No trajecto para a
ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido
e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela
regra e pela probabilidade. A causa foi apenas o
último conceito filosófico que serviu de padrão para
a crítica científica, porque ela era, por assim dizer,
dentre todas as ideias antigas, o único conceito que a
ela ainda se apresentava, derradeira secularização do
princípio criador. A filosofia buscou sempre, desde
Bacon, uma definição moderna de substância e
qualidade, de acção e paixão, do ser e da existência,
mas a ciência já podia passar sem semelhantes
categorias. Essas categorias tinham ficado para trás
como idola theatri da antiga metafísica e já eram,
em sua época, monumentos de entidades e potências
de um passado pré-histórico. Para este, a vida e a
morte haviam se explicado e entrelaçado nos mitos.
As categorias, nas quais a filosofia ocidental
determinava sua ordem natural eterna, marcavam os
lugares outrora ocupados por Ocnos e Perséfone,
Ariadne e Nereu. As cosmologias pré-socráticas
fixam o instante da transição. O húmido, o indiviso,
o ar, o fogo, aí citados como a matéria primordial da
natureza, são apenas sedimentos racionalizados da
intuição mítica. Assim como as imagens da geração
a partir das águas do rio e da terra se tornaram, entre
os gregos, princípios hilozoistas, elementos, assim
também toda a luxuriante plurivocidade dos
demónios míticos espiritualizou-se na forma pura
das entidades ontológicas. Com as Idéias de Platão,
finalmente, também os deuses patriarcais do Olimpo
foram capturados pelo logos filosófico. O
esclarecimento, porém, reconheceu as antigas
potências no legado platónico e aristotélico da
metafísica e instaurou um processo contra a
pretensão de verdade dos universais, acusando-a de
superstição. Na autoridade dos conceitos universais
ele crê enxergar ainda o medo pelos demónios, cujas
imagens eram o meio, de que se serviam os homens,
no ritual mágico, para tentar influenciar a natureza.
Doravante, a matéria deve ser dominada sem o
recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes,
sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se
submete ao critério da calculabilidade e da utilidade
torna-se suspeito para o esclarecimento. A partir do
momento em que ele pode se desenvolver sem a
interferência da coerção externa, nada mais pode
segurá-lo. Passa-se então com as suas ideias acerca
do direito humano o mesmo que se passou com os
universais mais antigos. Cada resistência espiritual
que ele encontra serve apenas para aumentar sua
força.5
Isso se deve ao facto de que o esclarecimento
5
Cf. Hegel, Phänomenologie des Geistes. Werke. Vol. II.
ainda se reconhece a si mesmo nos próprios mitos.
Quaisquer que sejam os mitos de que possa se valer
a resistência, o simples facto de que eles se tornam
argumentos por uma tal oposição significa que eles
adoptam o princípio da racionalidade corrosiva da
qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento é
totalitário.
Para ele, o elemento básico do mito foi sempre
o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na
natureza.6
O sobrenatural, o espírito e os demónios
seriam as imagens especulares dos homens que se
deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras
míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento,
ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito. A
resposta de Édipo ao enigma da esfinge: “É o
homem!” é a informação estereotipada
invariavelmente repetida pelo esclarecimento, não
importa se este se confronta com uma parte de um
sentido objectivo, o esboço de uma ordem, o medo
de potências maléficas ou a esperança da redenção.
De antemão, o esclarecimento só reconhece como
ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade.
Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e
cada coisa. Não é nisso que sua versão racionalista
se distingue da versão empirista. Embora as
diferentes escolas interpretassem de maneira
diferente os axiomas, a estrutura da ciência unitária
era sempre a mesma. O postulado baconiano da una
scientia universalis7
é, apesar de todo o pluralismo
das áreas de pesquisa, tão hostil ao que não pode ser
vinculado, quanto a mathesis universalis de Leibniz
à descontinuidade. A multiplicidade das figuras se
reduz à posição e à ordem, a história ao facto, as
coisas à matéria. Ainda de acordo com Bacon, entre
os primeiros princípios e os enunciados
observacionais deve subsistir uma ligação lógica
unívoca, medida por graus de universalidade. De
Maistre zomba de Bacon por cultivar “une idole
d’échelle”.8
A lógica formal era a grande escola da
unificação. Ela oferecia aos esclarecedores o
esquema da calculabilidade do mundo. O
equacionamento mitologizante das Ideias com os
números nos últimos escritos de Platão exprime o
anseio de toda desmitologização: o número tomouse
o cânon do esclarecimento. As mesmas equações
dominam a justiça burguesa e a troca mercantil.
“Não é a regra: ‘se adicionares o desigual ao igual
pp. 410 sg.
6
Xenófanes, Montaigne, Hume, Feuerbach e Salomon
Reinach estão de acordo nesse ponto. Quanto a Reinach, cf.
Orpheus (trad. de F. Simmons). Londres e Nova York, 1909,
pp. 6 sg.
7
Bacon, De augmentis scientiarum, op. cit. Vol. VIII, p.
152.
8
Les Soirées de Saint-Petersbourg. 5ieme entretien.
Oeuvres complètes Lyon, 1891. Vol. IV, p. 256.
7
obterás algo de desigual’ (Si inaequalibus aequalia
addas, omnia erunt inaequalia) um princípio tanto
da justiça quanto da matemática? E não existe uma
verdadeira coincidência entre a justiça cumulativa e
distributiva por um lado e as proporções
geométricas e aritméticas por outro lado?9
A
sociedade burguesa está dominada pelo equivalente.
Ela torna o heterogéneo comparável, reduzindo-o a
grandezas abstractas. Para o esclarecimento, aquilo
que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa
a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a
literatura. “Unidade” continua a ser a divisa, de
Parménides a Russell. O que se continua a exigir
insistentemente é a destruição dos deuses e das
qualidades.
Mas os mitos que caem vítimas do
esclarecimento já eram o produto do próprio
esclarecimento. No cálculo científico dos
acontecimentos anula-se a conta que outrora o
pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O
mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas
também expor, fixar, explicar. Com o registo e a
colecção dos mitos, essa tendência reforçou-se.
Muito cedo deixaram de ser um relato, para se
tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma
representação dos acontecimentos bem como do
processo a ser influenciado pela magia. Esse
elemento teórico do ritual tornou-se autónomo nas
primeiras epopeias dos povos. Os mitos, como os
encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob
o signo daquela disciplina e poder que Bacon
enaltece como o objectivo a se alcançar. O lugar dos
espíritos e demónios locais foi tomado pelo céu e
sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do
feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem dosado e
pelo trabalho servil mediado pelo comando. As
deidades olímpicas não se identificam mais
directamente aos elementos, mas passam a significá-
los. Em Homero, Zeus preside o céu diurno, Apolo
guia o sol, Hélio e Éo já tendem para o alegórico.
Os deuses separam-se dos elementos materiais como
sua suprema manifestação. De agora em diante, o
ser se resolve no logos – que, com o progresso da
filosofia, se reduz à mónada, mero ponto de
referência – e na massa de todas as coisas e criaturas
exteriores a ele. Uma única distinção, a distinção
entre a própria existência e a realidade, engolfa
todas as outras distinções. Destruídas as distinções,
o mundo é submetido ao domínio dos homens.
Nisso estão de acordo a história judia da criação e a
religião olímpica. “...e dominarão os peixes do mar
e as aves do céu e o gado e a terra inteira e todos os
répteis que se arrastam sobre a terra.”10 “Zeus, nosso
9
Bacon, Advancement of Learning, op. cit. Vol. II, p. 126.
10 Génesis I, 26.
pai, sois o senhor dos céus, e a vosso olhar não
escapa nenhuma obra humana, sacrílegas ou justas,
e nem mesmo a turbulência dos animais, e estimais
a rectidão.”11 “E assim se passa que um expia logo,
um outro mais tarde. E mesmo que alguém escape
ao castigo e o fado ameaçador dos deuses não o
alcance, este acaba sempre por chegar, e são pessoas
inocentes – seus filhos ou uma outra geração – que
terão de expiar o crime.”12 Perante os deuses, só
consegue se afirmar quem se submete sem
restrições. O despertar do sujeito tem por preço o
reconhecimento do poder como o princípio de todas
as relações. Em face da unidade de tal razão, a
separação de Deus e do homem reduz-se àquela
irrelevância que, inabalável, a razão assinalava
desde a mais antiga crítica de Homero. Enquanto
soberanos da natureza, o deus criador e o espírito
ordenador se igualam. A imagem e semelhança
divinas do homem consistem na soberania sobre a
existência, no olhar do senhor, no comando.
O mito converte-se em esclarecimento, e a
natureza em mera objectividade. O preço que os
homens pagam pelo aumento de seu poder é a
alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O
esclarecimento comporta-se com as coisas como o
ditador se comporta com os homens. Este conheceos
na medida em que pode manipulá-los. O homem
de ciência conhece as coisas na medida em que pode
fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele.
Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se
como sempre a mesma, como substrato da
dominação. Essa identidade constitui a unidade da
natureza. Assim como a unidade do sujeito, ela
tampouco constitui um pressuposto da conjuração
mágica. Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à
chuva, à serpente lá fora ou ao demónio dentro do
doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e
o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele
mudava igual às máscaras do culto, que deviam se
assemelhar aos múltiplos espíritos. A magia é a pura
e simples inverdade, mas nela a dominação ainda
não é negada, ao se colocar, transformada na pura
verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu.
O feiticeiro torna-se semelhante aos demónios; para
assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar
assustadiço ou suave. Embora seu ofício seja a
repetição, diferentemente do civilizado – para quem
os modestos campos de caça se transformam no
cosmo unificado, no conjunto de todas as
possibilidades de presas – ele ainda não se declarou
à imagem e semelhança do poder invisível. É só
11 Arquíloco, frag. 87. Citado por Deussen, Allgemeine
Geschichte der Philosophie. Vol. II, 1ª secção. Leipzig. 1911,
p. 18.
12 Sólon, frag. 13. 25 sg., ibid., p. 20.
8
enquanto tal imagem e semelhança que o homem
alcança a identidade do eu que não pode se perder
na identificação com o outro, mas toma
definitivamente posse de si como máscara
impenetrável. É à identidade do espírito e a seu
correlato, à unidade da natureza, que sucumbem as
múltiplas qualidades. A natureza desqualificada
torna-se a matéria caótica para uma simples
classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero
ter, a identidade abstracta. Na magia existe uma
substitutividade específica. O que acontece à lança
do inimigo, à sua cabeleira, a seu nome, afecta ao
mesmo tempo a pessoa; em vez do deus, é o animal
sacrificial que é massacrado. A substituição no
sacrifício assinala um novo passo em direcção à
lógica discursiva. Embora a cerva oferecida em
lugar da filha e o cordeiro em lugar do primogénito
ainda devessem ter qualidades próprias, eles já
representavam o género e exibiam a indiferença do
exemplar. Mas a sacralidade do hic et nunc, a
singularidade histórica do escolhido, que recai sobre
o elemento substituto, distingue-o radicalmente,
torna-o introcável na troca. É a isso que a ciência dá
fim. Nela não há nenhuma substitutividade
específica: se ainda há animais sacrificiais, não há
mais Deus. A substitutividade converte-se na
fungibilidade universal. Um átomo é desintegrado,
não em substituição, mas como um espécime da
matéria, e a cobaia atravessa, não em substituição,
mas desconhecida como um simples exemplar, a
paixão do laboratório. Porque na ciência funcional
as distinções são tão fluidas que tudo desaparece na
matéria una, o objecto científico se petrifica, e o
rígido ritual de outrora parece flexível porquanto
substituía a um também o outro. O mundo da magia
ainda continha distinções, cujos vestígios
desapareceram até mesmo da forma linguística.13 As
múltiplas afinidades entre os entes são recalcadas
pela única relação entre o sujeito doador de sentido
e o objecto sem sentido, entre o significado racional
e o portador ocasional do significado. No estágio
mágico, sonho e imagem não eram tidos como
meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por
semelhança ou pelo nome. A relação não é a da
intenção, mas do parentesco. Como a ciência, a
magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese,
não pelo distanciamento progressivo em relação ao
objecto. Ela não se baseia de modo algum na
“omnipotência dos pensamentos”, que o primitivo
se atribuiria, segundo se diz, assim como o
neurótico.14 Não pode haver uma “superestimação
13 Cf. p. ex. Robert H. Lowie, An Introduction to Cultural
Anthropology, Nova York, 1940, pp. 344 sgg.
14 Cf. Freud, Totem und Tabu. Gesamtheite werke Vol. IX.
pp. 106 sgg.
dos processos psíquicos por oposição à realidade”,
quando o pensamento e a realidade não estão
radicalmente separados. A “confiança inabalável na
possibilidade de dominar o mundo”,15 que Freud
anacronicamente atribui à magia, só vem
corresponder a uma dominação realista do mundo
graças a uma ciência mais astuciosa do que a magia.
Para substituir as práticas localizadas do curandeiro
pela técnica industrial universal foi preciso,
primeiro, que os pensamentos se tornassem
autónomos em face dos objectos, como ocorre no
ego ajustado à realidade.
Enquanto totalidade desenvolvida
linguisticamente, que desvaloriza, com sua
pretensão de verdade, a crença mítica mais antiga: a
religião popular, o mito patriarcal solar é ele próprio
esclarecimento, com o qual o esclarecimento
filosófico pode-se medir no mesmo plano. A ele se
paga, agora, na mesma moeda. A própria mitologia
desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no
qual toda concepção teórica determinada acaba
fatalmente por sucumbir a uma crítica arrasadora, à
crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios
conceitos de espírito, de verdade, e até mesmo de
esclarecimento tenham-se convertido em magia
animista. O princípio da necessidade fatal, que traz a
desgraça aos heróis míticos e que se desdobra a
partir da sentença oracular como uma consequência
lógica, não apenas domina todo sistema racionalista
da filosofia ocidental, onde se vê depurado até
atingir o rigor da lógica formal, mas impera até
mesmo sobre a série dos sistemas, que começa com
a hierarquia dos deuses e, num permanente
crepúsculo dos ídolos, transmite sempre o mesmo
conteúdo: a ira pela falta de honestidade. Do mesmo
modo que os mitos já levam a cabo o
esclarecimento, assim também o esclarecimento fica
cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na
mitologia. Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos,
para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do
mito. Ele quer se furtar ao processo do destino e da
retribuição, fazendo-o pagão, ele próprio, uma
retribuição. No mito, tudo o que acontece deve
expiar uma pena pelo facto de ter acontecido. E
assim continua no esclarecimento: o facto torna-se
nulo, mal acabou de acontecer. A doutrina da
igualdade entre a acção e a reacção afirmava o
poder da repetição sobre o que existe muito tempo
após os homens terem renunciado à ilusão de que
pela repetição poderiam se identificar com a
realidade repetida e, assim, escapar a seu poder.
Mas quanto mais se desvanece a ilusão mágica,
tanto mais inexoravelmente a repetição, sob o título
da submissão à lei, prende o homem naquele ciclo
15 lbid., p. 110.
9
que, objectualizado sob a forma da lei natural,
parecia garanti-lo como um sujeito livre. O princípio
da imanência, a explicação de todo acontecimento
como repetição, que o esclarecimento defende
contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio
mito. A insossa sabedoria para a qual não há nada
de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo
sem-sentido já teriam sido jogadas, porque todos
grandes pensamentos já teriam sido pensados,
porque as descobertas possíveis poderiam ser
projectadas de antemão, e os homens estariam
forçados a assegurar a autoconservação pela
adaptação – essa insossa sabedoria reproduz tãosomente
a sabedoria fantástica que ela rejeita: a
ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz
sem cessar o que já era. O que seria diferente é
igualado. Esse é o veredicto que estabelece
criticamente os limites da experiência possível. O
preço que se paga pela identidade de tudo com tudo
é o facto de que nada, ao mesmo tempo, pode ser
idêntico consigo mesmo. O esclarecimento corrói a
injustiça da antiga desigualdade, o senhorio não
mediatizado; perpetua-o, porém, ao mesmo tempo,
na mediação universal, na relação de cada ente com
cada ente. Ele faz aquilo que Kirkegaard celebra em
sua ética protestante e que se encontra no ciclo
épico de Héracles como uma das imagens
primordiais do poder mítico: ele elimina o
incomensurável. Não apenas são as qualidades
dissolvidas no pensamento, mas os homens são
forçados à real conformidade. O preço dessa
vantagem, que é a indiferença do mercado pela
origem das pessoas que nele vêm trocar suas
mercadorias, é pago por elas mesmas ao deixarem
que suas possibilidades inatas sejam modeladas pela
produção das mercadorias que se podem comprar no
mercado. Os homens receberam o seu eu como algo
pertencente a cada um, diferente de todos os outros,
para que ele possa com tanto maior segurança se
tornar igual. Mas, como isso nunca se realizou
inteiramente, o esclarecimento sempre simpatizou,
mesmo durante o período do liberalismo, com a
coerção social. A unidade da colectividade
manipulada consiste na negação de cada indivíduo;
seria digna de escárnio a sociedade que conseguisse
transformar os homens em indivíduos. A horda, cujo
nome sem dúvida está presente na organização da
Juventude Hitleriana, não é nenhuma recaída na
antiga barbárie, mas o triunfo da igualdade
repressiva, a realização pelos iguais da igualdade do
direito à injustiça. O mito de fancaria dos fascistas
evidencia-se como o autêntico mito da antiguidade,
na medida em que o mito autêntico conseguiu
enxergar a retribuição, enquanto o falso cobrava-a
cegamente de suas vítimas. Toda tentativa de
romper as imposições da natureza rompendo a
natureza, resulta numa submissão ainda mais
profunda às imposições da natureza. Tal foi o rumo
tomado pela civilização europeia. A abstracção, que
é o instrumento do esclarecimento, comporta-se
com seus objectos do mesmo modo que o destino,
cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se
comporta como um processo de liquidação. Sob o
domínio nivelador do abstracto, que transforma
todas as coisas na natureza em algo de reproduzível,
e da indústria, para a qual esse domínio do abstracto
prepara o reproduzível, os próprios liberados
acabaram por se transformar naquele
“destacamento” que Hegel16 designou como o
resultado do esclarecimento.
A distância do sujeito com relação ao objecto,
que é o pressuposto da abstracção, está fundada na
distância em relação à coisa, que o senhor conquista
através do dominado. Os cantos de Homero e os
hinos do Rigveda datam da época da dominação
territorial e dos lugares fortificados, quando uma
belicosa nação de senhores se estabeleceu sobre a
massa dos autóctones vencidos.17 O deus supremo
entre os deuses surgiu com esse mundo civil, onde o
rei, como chefe da nobreza armada, mantém os
subjugados presos à terra, enquanto os médicos,
adivinhos, artesãos e comerciantes se ocupam do
intercâmbio social. Com o fim do nomadismo, a
ordem social foi instaurada sobre a base da
propriedade fixa. Dominação e trabalho separam-se.
Um proprietário como Ulisses “dirige a distância
um pessoal numeroso, meticulosamente organizado,
composto de servidores e pastores de bois, de
ovelhas e de porcos. Ao anoitecer, depois de ver de
seu palácio a terra iluminada por mil fogueiras, pode
entregar-se sossegado ao sono: ele sabe que seus
bravos servidores vigiam, para afastar os animais
selvagens e expulsar os ladrões dos coutos que estão
encarregados de guardar”.18 A universalidade dos
pensamentos, como a desenvolve a lógica
discursiva, a dominação na esfera do conceito,
eleva-se fundamentada na dominação do real. É a
substituição da herança mágica, isto é, das antigas
representações difusas, pela unidade conceptual que
exprime a nova forma de vida, organizada com base
no comando e determinada pelos homens livres. O
eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a
sujeição do mundo, não demorou a identificar a
verdade em geral com o pensamento ordenador, e
16 Hegel, Phänomenologie des Geistes, op. cit., p. 424.
17 Cf. W. Kirfel, Geschichte Indiens, em:
Propyläenweltgeschichte. Vol. III, pp. 261 sg., e G. Glotz,
Histoire Grècque. Vol. I, em: Histoire Ancienne. Paris, 1938,
pp. 137 sg.
18 G. Glotz, op. cit., p. 140.
10
essa verdade não pode subsistir sem as rígidas
diferenciações daquele pensamento ordenador.
Juntamente com a magia mimética, ele tornou tabu
o conhecimento que atinge efectivamente o objecto.
Seu ódio volta-se contra a imagem do mundo pré-
histórico superado e sua felicidade imaginária. Os
deuses ctónicos dos habitantes primitivos são
banidos para o inferno em que se converte a terra,
sob a religião do sol e da luz de Indra e Zeus.
O céu e o inferno, porém, estão ligados um ao
outro. Assim como, em cultos que não se excluíam,
o nome de Zeus era dado tanto a um deus
subterrâneo quanto a um deus da luz,19 e os deuses
olímpicos cultivavam toda espécie de relações com
os ctónicos, assim também as potências do bem e do
mal, a graça e a desgraça, não eram claramente
separadas. Elas estavam ligadas como o vir-a-ser e o
parecer, a vida e a morte, o verão e o inverno. No
mundo luminoso da religião grega perdura a obscura
indivisão do princípio religioso venerado sob o
nome de “mana” nos mais antigos estágios que se
conhecem da humanidade. Primário, indiferenciado,
ele é tudo o que é desconhecido, estranho: aquilo
que transcende o âmbito da experiência, aquilo que
nas coisas é mais do que sua realidade já conhecida.
O que o primitivo aí sente como algo de
sobrenatural não é nenhuma substância espiritual
oposta à substância material, mas o emaranhado da
natureza em face do elemento individual. O grito de
terror com que é vivido o insólito torna-se seu
nome. Ele fixa a transcendência do desconhecido
em face do conhecido e, assim, o horror como
sacralidade. A duplicação da natureza como
aparência e essência, acção e força, que torna
possível tanto o mito quanto a ciência, provém do
medo do homem, cuja expressão se converte na
explicação. Não é a alma que é transposta para a
natureza, como o psicologismo faz crer. O mana, o
espírito que move, não é nenhuma projecção, mas o
eco da real supremacia da natureza nas almas fracas
dos selvagens. A separação do animado e do
inanimado, a ocupação de lugares determinados por
demónios e divindades, tem origem nesse pré-
animismo. Nele já está virtualmente contida até
mesmo a separação do sujeito e do objecto. Quando
uma árvore é considerada não mais simplesmente
como árvore, mas como testemunho de uma outra
coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a
contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo
ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e
19 Cf. Kurt Eckerrnann, Jahrbuch der Religionsgeschichte
und Mytho1ogie. Halle, 1845. Vol. l, p. 241. e O. Kern, Die
Religion der Griechen. Berlirn, 1926. Vol. I. pp. 181 sg.
não idêntica.20 Através da divindade, a linguagem
passa da tautologia à linguagem. O conceito, que se
costuma definir como a unidade característica do
que está nele subsumido, já era desde o início o
produto do pensamento dialéctico, no qual cada
coisa só é o que ela é tornando-se aquilo que ela não
é. Eis aí a forma primitiva da determinação
objectivadora na qual se separavam o conceito e a
coisa, determinação essa que já está amplamente
desenvolvida na epopeia homérica e que se acelera
na ciência positiva moderna. Mas essa dialéctica
permanece impotente na medida em que se
desenvolve a partir do grito de terror que é a própria
duplicação, a tautologia do terror. Os deuses não
podem livrar os homens do medo, pois são as vozes
petrificadas do medo que eles trazem como nome.
Do medo o homem presume estar livre quando não
há nada mais de desconhecido. É isso que determina
o trajecto da desmitologização e do esclarecimento,
que identifica o animado ao inanimado, assim como
o mito identifica o inanimado ao animado. O
esclarecimento é a radicalização da angústia mítica.
A pura imanência do positivismo, seu derradeiro
produto, nada mais é do que um tabu, por assim
dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora,
porque a simples ideia do “fora” é a verdadeira
fonte da angústia... Se o primitivo apaziguava, às
vezes, seu desejo de vingar o assassinato de um dos
seus acolhendo o assassino na própria família,21 isso
significava, tanto quanto a vingança, a infusão do
sangue alheio no próprio sangue, a restauração da
imanência. O dualismo mítico não ultrapassa o
âmbito da existência. O mundo totalmente
dominado pelo mana, bem como o mundo do mito
indiano e grego, são, ao mesmo tempo, sem saída e
eternamente iguais. Todo nascimento se paga com a
morte, toda ventura com a desventura. Homens e
deuses podem tentar, no prazo que lhes cabe,
distribuir a sorte de cada um segundo critérios
diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao
cabo, a realidade triunfa sobre eles. Até mesmo sua
justiça, arrancada que foi à fatalidade, exibe ainda
os seus traços. Ela corresponde ao olhar que os
homens, tanto os primitivos quanto os gregos e os
bárbaros, lançam sobre o mundo a partir de uma
sociedade da opressão e da miséria. Por isso, tanto a
justiça mítica como a esclarecida consideram a
culpa e a expiação, a ventura e a desventura como
20 Hubert e Mauss descrevem da seguinte maneira o
conteúdo ideacional da “simpatia”, da mimese: “L’un est le
tout, tout est dans l’un, la nature triomphe de la nature.” (“O
uno é o todo, tudo está no uno, a natureza triunfa sobre a
natureza.”) H. Hubert e M. Mauss, Théorie générale de Ia
Magie, em: L’Année Sociologique, 1902-3, p. 100.
21 Cf. Westermack, Ursprung der Moralbegriffe. Leipzig,
1913. Vol. I. p. 402.
11
os dois lados de uma única equação. A justiça se
absorve no direito. O xamã esconjura o perigo com
a imagem do perigo. A igualdade é o seu
instrumento. É ela que, na civilização, regula o
castigo e o mérito. As representações míticas
também podem se reduzir integralmente a relações
naturais. Assim como a constelação dos Gémeos
remete, como todos os outros símbolos da
dualidade, ao ciclo inescapável da natureza; assim
como este mesmo ciclo tem, no símbolo do ovo, do
qual provêm os demais, seu símbolo mais remoto;
assim também a balança nas mãos de Zeus, que
simboliza a justiça de todo o mundo patriarcal,
remete à mera natureza. A passagem do caos para a
civilização, onde as condições naturais não mais
exercem seu poder de maneira imediata, mas através
da consciência dos homens, nada modificou no
princípio da igualdade. Aliás, os homens expiaram
essa passagem justamente com a adoração daquilo a
que estavam outrora submetidos como as demais
criaturas. Antes, os fetiches estavam sob a lei da
igualdade. Agora, a própria igualdade torna-se
fetiche. A venda sobre os olhos da Justiça não
significa apenas que não se deve interferir no
direito, mas que ele não nasceu da liberdade.
A doutrina dos sacerdotes era simbólica no
sentido de que nela coincidiam o signo e a imagem.
Como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu
originariamente também a função da imagem. Esta
função passou para os mitos. Os mitos, assim como
os ritos mágicos, têm em vista a natureza que se
repete. Ela é o âmago do simbólico: um ser ou um
processo representado como eterno porque deve
voltar sempre a ocorrer na efectuação do símbolo.
Inexauribilidade, renovação infinita, permanência
do significado não são apenas atributos de todos os
símbolos, mas seu verdadeiro conteúdo. As
representações da criação nas quais o mundo surge
da Mãe primordial, da Vaca ou do Ovo, são, ao
contrário do Génesis judeu, simbólicas. A zombaria
com que os antigos ridicularizaram os deuses
demasiadamente humanos deixou incólume seu
âmago. A individualidade não esgota a essência dos
deuses. Eles tinham ainda algo do mana dentro de
si; eles personificavam a natureza como um poder
universal. Com seus traços pré-animistas, eles se
destacam no esclarecimento. Sob o véu pudico da
chronique scandaleuse olímpica já se havia formado
a doutrina da mistura, da pressão e do choque dos
elementos, que logo se estabeleceu como ciência e
transformou os mitos em obras da fantasia. Com a
nítida separação da ciência e da poesia, a divisão de
trabalho já efectuada com sua ajuda estende-se à
linguagem. É enquanto signo que a palavra chega à
ciência. Enquanto som, enquanto imagem, enquanto
palavra propriamente dita, ela se vê dividida entre as
diferentes artes, sem jamais deixar-se reconstituir
através de sua adição, através da sinestesia ou da
arte total. Enquanto signo, a linguagem deve
resignar-se ao cálculo; para conhecer a natureza,
deve renunciar à pretensão de ser semelhante a ela.
Enquanto imagem, deve resignar-se à cópia; para ser
totalmente natureza, deve renunciar à pretensão de
conhecê-la. Com o progresso do esclarecimento, só
as obras de arte autênticas conseguiram escapar à
mera imitação daquilo que, de um modo qualquer, já
é. A antítese corrente da arte e da ciência, que as
separa como domínios culturais, a fim de torná-las
administráveis conjuntamente como domínios
culturais, faz com que elas acabem por se
confundirem como opostos exactos graças às suas
próprias tendências. A ciência em sua interpretação
neopositivista torna-se esteticismo, sistema de
signos desligados, destituídos de toda intenção
transcendendo o sistema: ela se torna aquele jogo
que os matemáticos há muito orgulhosamente
declararam assunto deles. A arte da copiabilidade
integral, porém, entregou-se até mesmo em suas
técnicas à ciência positivista. De facto, ela retorna
mais uma vez ao mundo, na duplicação ideológica,
na reprodução dócil. A separação do signo e da
imagem é inevitável. Contudo, se ela é, uma vez
mais, hipostasiada numa atitude ao mesmo tempo
inconsciente e autocomplacente, então cada um dos
dois princípios isolados tende para a destruição da
verdade.
O abismo que se abriu com a separação, a
filosofia enxergou-o na relação entre a intuição e o
conceito e tentou sempre em vão fechá-lo de novo:
aliás, é por essa tentativa que ela é definida. Na
maioria das vezes, porém, ela se colocou do lado do
qual recebia o nome. Platão baniu a poesia com o
mesmo gesto com que o positivismo baniu a
doutrina das Ideias. Com sua arte celebrada,
Homero, segundo se diz, não levou a cabo nem
reformas públicas nem privadas, não ganhou
nenhuma guerra nem fez nenhuma invenção. Não
sabemos, diz-se, da existência de numerosos
seguidores que o tenham honrado ou amado. A arte
teria, primeiro, que mostrar a sua utilidade.22 A
imitação está proscrita tanto em Homero como entre
os judeus. A razão e a religião declaram anátema o
princípio da magia. Mesmo na distância
renunciadora da vida, enquanto arte, ele permanece
desonroso; as pessoas que o praticam tornam-se
vagabundos, nómadas sobreviventes que não
encontram pátria entre os que se tornaram
sedentários. A natureza não deve mais ser
influenciada pela assimilação, mas deve ser
22 Cf. Platão, o décimo livro da República.
12
dominada pelo trabalho. A obra de arte ainda tem
em comum com a magia o facto de estabelecer um
domínio próprio, fechado em si mesmo e arrebatado
ao contexto da vida profana. Neste domínio
imperam leis particulares. Assim como a primeira
coisa que o feiticeiro fazia em sua cerimonia era
delimitar em face do mundo ambiente o lugar onde
as forças sagradas deviam actuar, assim também,
com cada obra de arte, seu círculo fechado se
destaca do real. É exactamente a renúncia a agir,
pela qual a arte se separa da simpatia mágica, que
fixa ainda mais profundamente a herança mágica.
Esta renúncia coloca a imagem pura em oposição à
realidade mesma, cujos elementos ela supera
retendo-os (aufhebt) dentro de si. Pertence ao
sentido da obra de arte, da aparência estética, ser
aquilo em que se converteu, na magia do primitivo,
o novo e terrível: a manifestação do todo no
particular. Na obra de arte volta sempre a realizar-se
a duplicação pela qual a coisa se manifestava como
algo de espiritual, como exteriorização do mana. É
isto que constitui sua aura. Enquanto expressão da
totalidade, a arte reclama a dignidade do absoluto.
Isso, às vezes, levou a filosofia a atribuir-lhe
prioridade em face do conhecimento conceptual.
Segundo Schelling, a arte entra em acção quando o
saber desampara os homens. Para ele, a arte é “o
modelo da ciência, e é aonde está a arte que a
ciência deve ainda chegar”.23 Em sua doutrina, a
separação da imagem e do signo é “totalmente
suprimida por cada representação artística”.24 Só
muito raramente o mundo burguês esteve aberto a
semelhante confiança na arte. Quando ele limitava o
saber, isso acontecia via de regra, não para abrir
espaço para a arte, mas para a fé. É através da fé que
a religiosidade militante dos novos tempos –
Torquemada, Lutero, Maomé – pretendia reconciliar
o espírito e a vida. Mas a fé é um conceito privativo:
ela se anula com fé se não ressalta continuamente
sua oposição ao saber ou sua concordância com ele.
Permanecendo dependente da limitação do saber,
ela própria fica limitada. A tentativa da fé,
empreendida no protestantismo, de encontrar, como
outrora, o princípio da verdade que a transcende, e
sem a qual não pode existir directamente, na própria
palavra e de restituir a esta a força simbólica – essa
tentativa teve como preço a obediência à palavra,
aliás a uma palavra que não era a sagrada.
Permanecendo inevitavelmente presa ao saber como
amiga ou inimiga, a fé perpetua a separação na luta
para superá-la: seu fanatismo é a marca de sua
23 Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie.
Fünfter Hauptabschnitt. Werke. Erste Abteilung. Vol. II, p.
623.
24 Ibid., p. 626.
inverdade, a confissão objectiva de que quem
apenas crê por isso mesmo não mais crê. A má
consciência é sua segunda natureza. Na secreta
consciência da deficiência que lhe é
necessariamente inerente, da contradição imanente
nela e que consiste em fazer da reconciliação sua
vocação, está a razão por que toda a honestidade dos
fiéis sempre foi irascível e perigosa. Não foi como
exagero mas como realização do próprio princípio
da fé que se cometeram os horrores do fogo e da
espada, da contra-reforma e da reforma. A fé não
cessa de mostrar que é do mesmo jaez que a história
universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos
tempos modernos, ela até mesmo se converte em
seu instrumento preferido, sua astúcia particular.
Não é apenas o esclarecimento do século dezoito
que é irresistível, como atestou Hegel, mas (e
ninguém sabia melhor do que ele) o movimento do
próprio pensamento. Tanto o mais superficial
quanto o mais profundo discernimento já contêm o
discernimento de sua distância com relação à
verdade que faz do apologeta um mentiroso. O
paradoxo da fé acaba por degenerar no embuste, no
mito do século vinte, enquanto sua irracionalidade
degenera na cerimónia organizada racionalmente
sob o controle dos integralmente esclarecidos e que,
no entanto, dirigem a sociedade em direcção à
barbárie.
Quando a linguagem penetra na história, seus
mestres já são sacerdotes e feiticeiros. Quem viola
os símbolos fica sujeito, em nome das potências
supraterrenas, às potências terrenas, cujos
representantes são esses órgãos comissionados da
sociedade. O que precedeu a isso está envolto em
sombras. Onde quer que a etnologia o encontre, o
sentimento de horror de que se origina o mana já
tinha recebido a sanção pelo menos dos mais velhos
da tribo. O mana não-idêntico e difuso é tornado
consistente pelos homens e materializado à força.
Logo os feiticeiros povoam todo lugar de
emanações e correlacionam a multiplicidade dos
ritos sagrados à dos domínios sagrados. Eles
expandem o mundo dos espíritos e suas
particularidades e, com ele, seu saber corporativo e
seu poder. A essência sagrada transfere-se para os
feiticeiros que lidam com ela. Nas primeiras fases
do nomadismo, os membros da tribo têm ainda uma
parte autónoma nas acções destinadas a influenciar
o curso da natureza. Os homens rastreiam a caça, as
mulheres cuidam do trabalho que pode ser feito sem
um comando rígido. Quanta violência foi necessária
antes que as pessoas se acostumassem a uma
coordenação tão simples como essa é impossível
determinar. Nela, o mundo já está dividido numa
esfera do poder e numa esfera profana. Nela, o curso
13
da natureza enquanto eflúvio do mana já está erigido
em norma, que exige a submissão. Mas, se o
selvagem nómada, apesar de toda a submissão,
ainda participava da magia que a limitava e se
disfarçava no animal caçado para surpreendê-lo, em
períodos posteriores o comércio com os espíritos e a
submissão foram divididos pelas diferentes classes
da humanidade: o poder está de um lado, a
obediência do outro. Os processos naturais
recorrentes e eternamente iguais são inculcados
como ritmo do trabalho nos homens submetidos,
seja por tribos estrangeiras, seja pelas próprias
cliques de governantes, no compasso da maça e do
porrete que ecoa em todo tambor bárbaro, em todo
ritual monótono. Os símbolos assumem a expressão
do fetiche. A repetição da natureza, que é o seu
significado, acaba sempre por se mostrar como a
permanência, por eles representada, da coerção
social. O sentimento de horror materializado numa
imagem sólida torna-se o sinal da dominação
consolidada dos privilegiados. Mas isso é o que os
conceitos universais continuam a ser mesmo quando
se desfizeram de todo aspecto figurativo. A forma
dedutiva da ciência reflecte ainda a hierarquia e a
coerção. Assim como as primeiras categorias
representavam a tribo organizada e seu poder sobre
os indivíduos, assim também a ordem lógica em seu
conjunto – a dependência, o encadeamento, a
extensão e união dos conceitos – baseia-se nas
relações correspondentes da realidade social, da
divisão do trabalho.25 Só que, é verdade, esse
carácter social das formas do pensamento não é,
como ensina Durkheim, expressão da solidariedade
social, mas testemunho da unidade impenetrável da
sociedade e da dominação. A dominação confere
maior consistência e força ao todo social no qual se
estabelece. A divisão do trabalho, em que culmina o
processo social da dominação, serve à
autoconservação do todo dominado. Dessa maneira,
porém, o todo enquanto todo, a activação da razão a
ele imanente, converte-se necessariamente na
execução do particular. A dominação defronta o
indivíduo como o universal, como a razão na
realidade efectiva. O poder de todos os membros da
sociedade, que enquanto tais não têm outra saída,
acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles
imposta, por se agregar no sentido justamente da
realização do todo, cuja racionalidade é assim mais
uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos
por obra e graça de poucos realiza-se sempre como
a subjugação dos indivíduos por muitos: a opressão
da sociedade tem sempre o carácter da opressão por
25 Cf. E. Durkheim, De quelques formes primitives de
classification. L ‘Année Sociologique. Vol. IV, 1903. pp. 66
sg.
uma colectividade. É essa unidade de colectividade
e dominação e não a universalidade social imediata,
a solidariedade, que se sedimenta nas formas do
pensamento. Os conceitos filosóficos nos quais
Platão e Aristóteles expõem o mundo, exigiram,
com sua pretensão de validade universal, as relações
por eles fundamentadas como a verdadeira e
efectiva realidade. Esses conceitos provêm, como
diz Vico,26 da praça do mercado de Atenas. Eles
reflectiam com a mesma pureza das leis da física a
igualdade dos cidadãos plenos e a inferioridade das
mulheres, das crianças e dos escravos. A própria
linguagem conferia ao que era dito, isto é, às
relações da dominação, aquela universalidade que
ela tinha assumido como veículo de uma sociedade
civil. A ênfase metafísica, a sanção através de ideias
e normas, nada mais era senão a hipostasiação da
dureza e da exclusividade que os conceitos tinham
que assumir onde quer que a linguagem reunisse a
comunidade dos dominantes para o exercício do
comando. Na medida em que constituíam
semelhante reforço do poder social da linguagem, as
ideias se tornavam tanto mais supérfluas quanto
mais crescia esse poder, e a linguagem da ciência
preparou-lhes o fim. Não era à justificação
consciente que se ligava a sugestão que ainda
conserva algo do terror do fetiche. A unidade de
colectividade e dominação mostra-se antes de tudo
na universalidade que o mau conteúdo
necessariamente assume na linguagem, tanto
metafísica quanto científica. A apologia metafísica
deixava entrever a injustiça da ordem existente pelo
menos através da incongruência do conceito e da
realidade. Na imparcialidade da linguagem
científica, o impotente perdeu inteiramente a força
para se exprimir, e só o existente encontra aí seu
signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica do
que a metafísica. O esclarecimento acabou por
consumir não apenas os símbolos mas também seus
sucessores, os conceitos universais, e da metafísica
não deixou nada senão o medo abstracto frente à
colectividade da qual surgira. Diante do
esclarecimento, os conceitos estão na mesma
situação que os aposentados diante dos trusts
industriais: ninguém pode sentir-se seguro. Se o
positivismo lógico ainda deu uma chance à
probabilidade, o positivismo etnológico equipara-a
já à essência. “Nos idées vagues de chance et de
quintessence sont de pâles survivances de cette
26 G. Vico, Die Neue Wissenschaft über die
gemeinschaftliche Natur der Völker (trad. alemã de Auerbach)
.München, 1924, p. 397.
14
notion beaucoup plus riche”,27 a saber da substância
mágica.
O esclarecimento nominalista detém-se diante
do nomen, o conceito sem extensão, punctual, o
nome próprio. A questão se os nomes próprios,
como alguns afirmaram,28 eram originariamente, ao
mesmo tempo, nomes genéricos, não se pode mais
decidir com certeza; contudo os primeiros ainda não
partilharam o destino dos últimos. A substância do
ego negada por Hume e Mach não é a mesma que o
nome. Na religião judaica, onde a ideia do
patriarcado culmina na destruição do mito, o liame
entre o nome e o ser permanece reconhecido através
da proibição de pronunciar o nome de Deus. O
mundo desencantado do judaísmo reconcilia a
magia através de sua negação na ideia de Deus. A
religião judaica não tolera nenhuma palavra que
proporcione consolo ao desespero de qualquer
mortal. Ela associa a esperança unicamente à
proibição de invocar o falso como Deus, o finito
como o infinito, a mentira como verdade. O penhor
da salvação consiste na recusa de toda fé que se
substitua a ela, o conhecimento na denúncia da
ilusão. A negação, todavia, não é abstracta. A
contestação indiferenciada de tudo o que é positivo,
a fórmula estereotipada da nulidade, como a
emprega o budismo, passa por cima da proibição de
dar nomes ao absoluto, do mesmo modo que seu
contrário, o panteísmo, ou sua caricatura, o
cepticismo burguês. As explicações do mundo como
o nada ou o todo são mitologias, e os caminhos
garantidos para a redenção, práticas mágicas
sublimadas. A autocomplacência do saber de
antemão e a transfiguração da negatividade em
redenção são formas falsas da resistência à
impostura. O direito da imagem é salvo na execução
fiel de sua proibição. Semelhante execução,
“negação determinada”,29 não está imunizada pela
soberania do conceito abstracto contra a intuição
sedutora, como o está o cepticismo para o qual são
nulos tanto o falso quanto o verdadeiro. A negação
determinada rejeita as representações imperfeitas do
absoluto, os ídolos, mas não como o rigorismo,
opondo-lhes a Ideia que elas não podem satisfazer.
A dialéctica revela, ao contrário, toda imagem como
uma forma de escrita. Ela ensina a ler em seus
traços a confissão de sua falsidade, confissão essa
que a priva de seu poder e o transfere para a
verdade. Desse modo, a linguagem torna-se mais
27 “Nossas idéias vagas de acaso e de quintessência são
pálidos remanescentes dessa noção muito mais rica”, Hubert e
Mauss, op. cit., p. 118.
28 Cf. Tönnies, Philosophische Terminologie, em:
Psychologisch-Soziologische Ansicht. Leipzig, 1908, p. 31.
29 Hegel, op. cit., p. 65.
que um simples sistema de signos. Com o conceito
da negação determinada, Hegel destacou um
elemento que distingue o esclarecimento da
desagregação positivista à qual ele o atribui. É
verdade, porém, que ele acabou por fazer um
absoluto do resultado sabido do processo total da
negação: a totalidade no sistema e na história, e que,
ao fazer isso, infringiu a proibição e sucumbiu ele
próprio à mitologia.
Isso não ocorreu apenas à sua filosofia
enquanto apoteose do pensamento em progresso,
mas ao próprio esclarecimento, entendido como a
sobriedade pela qual este acredita distinguir-se de
Hegel e da metafísica em geral. Pois o
esclarecimento é totalitário como qualquer outro
sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus
inimigos românticos sempre lhe censuraram: o
método analítico, o retorno aos elementos, a
decomposição pela reflexão, mas sim no facto de
que para ele o processo está decidido de antemão.
Quando, no procedimento matemático, o
desconhecido se torna a incógnita de uma equação,
ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo
de há muito conhecido, antes mesmo que se
introduza qualquer valor. A natureza é, antes e
depois da teoria quântica, o que deve ser apreendido
matematicamente. Até mesmo aquilo que não se
deixa compreender, a indissolubilidade e a
irracionalidade, é cercado por teoremas
matemáticos. Através da identificação antecipatória
do mundo totalmente matematizado com a verdade,
o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do
mítico. Ele confunde o pensamento e a matemática.
Desse modo, esta se vê por assim dizer solta,
transformada na instância absoluta. “Um mundo
infinito, no caso um mundo de idealidades, é
concebido como um mundo cujos objectos não se
tornam acessíveis ao nosso conhecimento um por
um, de maneira imperfeita e como que por acaso;
mas, ao contrário, um método racional, dotado de
uma unidade sistemática, acaba por alcançar numa
progressão infinita – todo o objecto tal como ele é
em si mesmo. Na matematização galileana da
natureza, a natureza ela própria é agora idealizada
sob a égide da nova matemática, ou, para exprimi-lo
de uma maneira moderna, ela se torna ela própria
uma multiplicidade matemática”.30 O pensar reificase
num processo automático e autónomo, emulando
a máquina que ele próprio produz para que ela possa
finalmente substituí-lo. O esclarecimento31 pôs de
30 Edmund Husserl, Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, em:
Philosophia. Belgrado, 1936, pp. 95 sg.
31 Cf. Schopenhauer, Parerga und Paralipomena. Vol. II, §
356. Werke. Ed. Deussen. Vol. V, p. 671.
15
lado a exigência clássica de pensar o pensamento –
a filosofia de Fichte é o seu desdobramento radical –
porque ela desviaria do imperativo de comandar a
práxis, que o próprio Fichte no entanto queria
obedecer. O procedimento matemático tornou-se,
por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da
autolimitação axiomática, ele se instaura como
necessário e objectivo: ele transforma o pensamento
em coisa, em instrumento, como ele próprio o
denomina. Mas, com essa mimese, na qual o
pensamento se iguala ao mundo, o factual tornou-se
agora a tal ponto a única referência, que até mesmo
a negação de Deus sucumbe ao juízo sobre a
metafísica. Para o positivismo que assumiu a
magistratura da razão esclarecida, extravagar em
mundos inteligíveis é não apenas proibido, mas é
tido como um palavreado sem sentido. Ele não
precisa – para sorte sua – ser ateu, porque o
pensamento coisificado não pode sequer colocar a
questão. De bom grado o censor positivista deixa
passar o culto oficial, do mesmo modo que a arte,
como um domínio particular da actividade social
nada tendo a ver com o conhecimento; mas a
negação que se apresenta ela própria com a
pretensão de ser conhecimento, jamais. Para a
mentalidade científica, o desinteresse do
pensamento pela tarefa de preparar o factual, a
transgressão da esfera da realidade é desvario e
autodestruição, do mesmo modo que, para o
feiticeiro do mundo primitivo, a transgressão do
círculo mágico traçado para a invocação, e nos dois
casos tomam-se providências para que a infracção
do tabu acabe realmente em desgraça para o
sacrílego. A dominação da natureza traça o círculo
dentro do qual a Crítica da Razão Pura baniu o
pensamento. Kant combinou a doutrina da
incessante e laboriosa progressão do pensamento ao
infinito com a insistência em sua insuficiência e
eterna limitação. Sua lição é um oráculo. Não há
nenhum ser no mundo que a ciência não possa
penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência
não é o ser. É o novo, segundo Kant, que o juízo
filosófico visa e, no entanto, ele não conhece nada
de novo, porque repete tão-somente o que a razão já
colocou no objecto. Mas este pensamento,
resguardado dos sonhos de um visionário nas
diversas disciplinas da ciência, recebe a conta: a
dominação universal da natureza volta-se contra o
próprio sujeito pensante; nada sobra dele senão
justamente esse eu penso eternamente igual que tem
que poder acompanhar todas as minhas
representações. Sujeito e objecto tornam-se ambos
nulos. O eu abstracto, o título que dá o direito a
protocolar e sistematizar, não tem diante de si outra
coisa senão o material abstracto, que nenhuma outra
propriedade possui além da de ser um substrato para
semelhante posse. A equação do espírito e do
mundo acaba por se resolver, mas apenas com a
mútua redução de seus dois lados. Na redução do
pensamento a uma aparelhagem matemática está
implícita a ratificação do mundo como sua própria
medida. O que aparece como triunfo da
racionalidade objectiva, a submissão de todo ente ao
formalismo lógico, tem por preço a subordinação
obediente da razão ao imediatamente dado.
Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos
dados não apenas suas relações espácio-temporais
abstractas, com as quais se possa então agarrá-las,
mas ao contrário pensá-las como a superfície, como
aspectos mediatizados do conceito, que só se
realizam no desdobramento de seu sentido social,
histórico, humano – toda a pretensão do
conhecimento é abandonada. Ela não consiste no
mero perceber, classificar e calcular, mas
precisamente na negação determinante de cada dado
imediato. Ora, ao invés disso, o formalismo
matemático, cujo instrumento é o número, a figura
mais abstracta do imediato, mantém o pensamento
firmemente preso à mera imediatidade. O factual
tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à
sua repetição, o pensamento transforma-se na mera
tautologia. Quanto mais a maquinaria do
pensamento subjuga o que existe, tanto mais
cegamente ela se contenta com essa reprodução.
Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia
da qual jamais soube escapar. Pois, em suas figuras,
a mitologia reflectira a essência da ordem existente
– o processo cíclico, o destino, a dominação do
mundo – como a verdade e abdicara da esperança.
Na pregnância da imagem mítica, bem como na
clareza da fórmula científica, a eternidade do factual
se vê confirmada e a mera existência expressa como
o sentido que ela obstrui. O mundo como um
gigantesco juízo analítico, o único sonho que restou
de todos os sonhos da ciência, é da mesma espécie
que o mito cósmico que associava a mudança da
primavera e do outono ao rapto da Perséfone. A
singularidade do evento mítico, que deve legitimar o
evento factual, é ilusão. Originariamente, o rapto da
deusa identificava-se imediatamente à morte da
natureza. Ele se repetia em cada outono, e mesmo a
repetição não era uma sequência de ocorrências
separadas, mas a mesma cada vez. Com o
enrijecimento da consciência do tempo, o evento foi
fixado como tendo ocorrido uma única vez no
passado, e tentou-se apaziguar ritualmente o medo
da morte em cada novo ciclo das estações com o
recurso a algo ocorrido há muito tempo. Mas a
separação é impotente. Em virtude da colocação
dessa ocorrência única do passado, o ciclo assume o
16
carácter do inevitável, e o medo irradia-se desse
acontecimento antigo para todos os demais como
sua mera repetição. A subsunção do factual, seja sob
a pré-história lendária, mítica, seja sob o formalismo
matemático, o relacionamento simbólico do presente
ao evento mítico no rito ou à categoria abstracta na
ciência, faz com que o novo apareça como algo
predeterminado, que é assim na verdade o antigo.
Quem fica privado da esperança não é a existência,
mas o saber que no símbolo figurativo ou
matemático se apropria da existência enquanto
esquema e a perpetua como tal.
No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a
esfera profana. A existência expurgada dos
demónios e de seus descendentes conceituais
assume em sua pura naturalidade o carácter
numinoso que o mundo de outrora atribuía aos
demónios. Sob o título dos factos brutos, a injustiça
social da qual esses provêm é sacramentada hoje em
dia como algo eternamente intangível e isso com a
mesma segurança com que o curandeiro se fazia
sacrossanto sob a protecção de seus deuses. O preço
da dominação não é meramente a alienação dos
homens com relação aos objectos dominados; com a
coisificação do espírito, as próprias relações dos
homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de
cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um
ponto nodal das reacções e funções convencionais
que se esperam dele como algo objectivo. O
animismo havia dotado a coisa de uma alma, o
industrialismo coisifica as almas. O aparelho
económico, antes mesmo do planejamento total, já
provê espontaneamente as mercadorias dos valores
que decidem sobre o comportamento dos homens. A
partir do momento em que as mercadorias, com o
fim do livre intercâmbio, perderam todas suas
qualidades económicas salvo seu carácter de fetiche,
este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da
sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras
agências da produção em massa e da cultura por ela
criada servem para inculcar no indivíduo os
comportamentos normalizados como os únicos
naturais, decentes, racionais. De agora em diante,
ele só se determina como coisa, como elemento
estatístico, como success or failure.32 Seu padrão é a
autoconservação, a assemelhação bem ou mal
sucedida à objectividade da sua função e aos
modelos colocados para ela. Tudo o mais, Ideia e
criminalidade, experimenta a força da colectividade
que tudo vigia, da sala de aula ao sindicato.
Contudo, mesmo essa colectividade ameaçadora
pertence tão-somente à superfície ilusória, sob a
qual se abrigam as potências que a manipulam como
algo de violento. A brutalidade com que enquadra o
32 Sucesso ou fracasso. (N. T.).
indivíduo é tão pouco representativa da verdadeira
qualidade dos homens quanto o valor o é dos
objectos de uso. A figura demoniacamente
distorcida, que as coisas e os homens assumiram sob
a luz do conhecimento isento de preconceitos,
remete de volta à dominação, ao princípio que já
operava a especificação do mana nos espíritos e
divindades e fascinava o olhar nas fantasmagorias
dos feiticeiros e curandeiros. A fatalidade com que
os tempos pré-históricos sancionavam a morte
ininteligível passa a caracterizar a realidade
integralmente inteligível. O pânico meridiano com
que os homens de repente se deram conta da
natureza como totalidade encontrou sua
correspondência no pânico que hoje está pronto a
irromper a qualquer instante: os homens aguardam
que este mundo sem saída seja incendiado por uma
totalidade que eles próprios constituem e sobre a
qual nada podem.
O horror mítico do esclarecimento tem por
objecto o mito. Ele não o descobre meramente em
conceitos e palavras não aclarados, como presume a
crítica da linguagem, mas em toda manifestação
humana que não se situe no quadro teleológico da
autoconservação. A frase de Spinoza: “Conatus sese
conservandi primum et unicum virtutis est
fundamentum”33 contém a verdadeira máxima de
toda a civilização ocidental, onde vêm se aquietar as
diferenças religiosas e filosóficas da burguesia. O eu
que, após o extermínio metódico de todos os
vestígios naturais como algo de mitológico, não
queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e
nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado
num sujeito transcendental ou lógico, o ponto de
referência da razão, a instância legisladora da acção.
Segundo o juízo do esclarecimento, bem como o do
protestantismo, quem se abandona imediatamente à
vida sem relação racional com a autoconservação
regride à pré-história. O instinto enquanto tal seria
tão mítico quanto a superstição; servir a um Deus
não postulado pelo eu, tão insano quanto o
alcoolismo. O progresso reservou a mesma sorte
tanto para a adoração quanto para a queda no ser
natural imediato: ele amaldiçoou do mesmo modo
aquele que, esquecido de si, se abandona tanto ao
pensamento quanto ao prazer. O trabalho social de
todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu
na economia burguesa; a um ele deve restituir o
capital aumentado, a outro a força para um
excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo
da autoconservação é assegurado pela divisão
burguesa do trabalho, tanto mais ele força a auto-
33 “O esforço para se conservar a si mesmo é o primeiro e
único fundamento da virtude”, Ethica, pars IV. Propos. XXII.
Coroll.
17
alienação dos indivíduos, que têm que se formar no
corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica.
Mas isso, mais uma vez, é levado em conta pelo
pensamento esclarecido: aparentemente, o próprio
sujeito transcendental do conhecimento acaba por
ser suprimido como a última reminiscência da
subjectividade e é substituído pelo trabalho tanto
mais suave dos mecanismos automáticos de
controle. A subjectividade volatilizou-se na lógica
de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a
fim de dispor de uma maneira ainda mais
desembaraçada. O positivismo – que afinal não
recuou nem mesmo diante do pensamento, essa
quimera tecida pelo cérebro no sentido mais liberal
do termo34 – eliminou a última instância
intermediária entre a acção individual e a norma
social. O processo técnico, no qual o sujeito se
coisificou após sua eliminação da consciência, está
livre da plurivocidade do pensamento mítico bem
como de toda significação em geral, porque a
própria razão se tornou um mero adminículo da
aparelhagem económica que a tudo engloba. Ela é
usada como um instrumento universal servindo para
a fabricação de todos os demais instrumentos.
Rigidamente funcionalizada, ela é tão fatal quanto a
manipulação calculada com exactidão na produção
material e cujos resultados para os homens escapam
a todo cálculo. Cumpriu-se afinal sua velha ambição
de ser um órgão puro dos fins. A exclusividade das
leis lógicas tem origem nessa univocidade da
função, em última análise no carácter coercitivo da
autoconservação. Esta culmina sempre na escolha
entre a sobrevivência ou a morte, escolha essa na
qual se pode perceber ainda um reflexo no princípio
de que, entre duas proposições contraditórias, só
uma pode ser verdadeira e só uma falsa. O
formalismo desse princípio e de toda a lógica, que é
o modo como ele se estabelece, deriva da opacidade
e do entrelaçamento de interesses numa sociedade
na qual só por acaso coincidem a conservação das
formas e a dos indivíduos. A expulsão do
pensamento da lógica ratifica na sala de aula a
coisificação do homem na fábrica e no escritório.
Assim, o tabu estende-se ao próprio poder de impor
tabus, o esclarecimento ao espírito em que ele
próprio consiste. Mas, desse modo, a natureza
enquanto verdadeira autoconservação é atiçada pelo
processo que prometia exorcizá-la, tanto no
indivíduo quanto no destino colectivo da crise e da
guerra. Se a única norma que resta para a teoria é o
ideal da ciência unificada, então a práxis tem que
sucumbir ao processo irreprimível da história
universal. O eu integralmente capturado pela
34 Hirngespinst = quimera, fantasia; literalmente; tecido, teia
(Gespinst) do cérebro (Hirn). (N. T.)
civilização se reduz a um elemento dessa
inumanidade, à qual a civilização desde o início
procurou escapar. Concretiza-se assim o mais antigo
medo, o medo da perda do próprio nome. Para a
civilização, a vida no estado natural puro, a vida
animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto.
Um após o outro, os comportamentos mimético,
mítico e metafísico foram considerados como eras
superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles
estava associada ao pavor de que o eu revertesse à
mera natureza, da qual havia se alienado com
esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele
indizível terror. A lembrança viva dos tempos
pretéritos – do nomadismo e, com muito mais razão,
dos estágios propriamente pré-patriarcais – fora
extirpada da consciência dos homens ao longo dos
milénios com as penas mais terríveis. O espírito
esclarecido substituiu a roda e o fogo pelo estigma
que imprimiu em toda irracionalidade, já que esta
leva à ruína. O hedonismo era moderado, os
extremos não lhe eram menos odiosos do que para
Aristóteles. O ideal burguês da naturalidade não visa
a natureza amorfa, mas a virtude do meio. A
promiscuidade e a ascese, a abundância e a fome
são, apesar de opostas, imediatamente idênticas
enquanto potências da dissolução. Ao subordinar a
vida inteira às exigências de sua conservação, a
minoria que detém o poder garante, justamente com
sua própria segurança, a perpetuação do todo. De
Homero aos tempos modernos, o espírito dominante
quer navegar entre a Cila da regressão à simples
reprodução e a Caribde da satisfação desenfreada;
ele sempre desconfiou de qualquer outra estrela-guia
que não fosse a do mal menor. Os neopagãos e
belicistas alemães querem liberar de novo o prazer.
Mas como o prazer, sob a pressão milenar do
trabalho, aprendeu a se odiar, ele permanece, na
emancipação totalitária, vulgar e mutilado, em
virtude de seu autodesprezo. Ele permanece preso à
autoconservação, para a qual o educara a razão
entrementes deposta. Nos momentos decisivos da
civilização ocidental, da transição para a religião
olímpica ao renascimento, à reforma e ao ateísmo
burguês, todas as vezes que novos povos e camadas
sociais recalcavam o mito, de maneira mais
decidida, o medo da natureza não compreendida e
ameaçadora – consequência da sua própria
materialização e objectivação – era degradado em
superstição animista, e a dominação da natureza
interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida.
Quando afinal a autoconservação se automatiza, a
razão é abandonada por aqueles que assumiram sua
herança a título de organizadores da produção e
agora a temem nos deserdados. A essência do
esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a
18
dominação. Os homens sempre tiveram de escolher
entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza
ao eu. Com a difusão da economia mercantil
burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado
pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios
gelados amadurece a sementeira da nova barbárie.
Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu
sempre a afastar-se do mito, voltando a cair sob o
seu influxo, levado pela mesma dominação.
Esse entrelaçamento de mito, dominação e
trabalho está conservado em uma das narrativas de
Homero. O duodécimo canto da Odisseia relata o
encontro com as Sereias. A sedução que exercem é a
de se deixar perder no que passou. Mas o herói a
quem se destina a sedução emancipou-se com o
sofrimento. Nos perigos mortais que teve de
arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria
vida e à identidade da pessoa. Assim como a água, a
terra e o ar, assim também separam-se para ele os
domínios do tempo. Para ele, a preia-mar do que já
foi recuou da rocha do presente, e as nuvens do
futuro estão acampadas no horizonte. O que Ulisses
deixou para trás entra no mundo das sombras: o eu
ainda está tão próximo do mito de outrora, de cujo
seio se arrancou, que o próprio passado por ele
vivido se transforma para ele num outrora mítico. É
através de uma ordenação fixa do tempo que ele
procura fazer face a isso. O esquema tripartido deve
liberar o instante presente do poder do passado,
desterrando-o para trás do limite absoluto do
irrecuperável e colocando-o à disposição do agora
como um saber praticável. A ânsia de salvar o
passado como algo de vivo, em vez de utilizá-lo
como material para o progresso, só se acalmava na
arte, à qual pertence a própria História como
descrição da vida passada. Enquanto a arte renunciar
a ser aceita como conhecimento, isolando-se assim
da práxis, ela será tolerada, como o prazer, pela
práxis social. Mas o canto das Sereias ainda não foi
reduzido à impotência da arte. Elas sabem “tudo o
que jamais ocorreu sobre a terra tão fértil”,35
sobretudo os acontecimentos de que participara o
próprio Ulisses e “o quanto sofreram os filhos de
Argos e os troianos por vontade dos Deuses”.36 Ao
conjurar imediatamente o passado recente, elas
ameaçam com a promessa irresistível do prazer –
que é a maneira como seu canto é percebido – a
ordem patriarcal, que só restitui a vida de cada um
em troca de sua plena medida de tempo. Quem se
deixa atrair por suas ilusões está condenado à
perdição, quando só uma contínua presença de
espírito consegue arrancar um meio de vida à
natureza. Se as sereias nada ignoram do que
35 Odisseia, XII. 191.
36 Ibid., XII, 189-90.
aconteceu, o preço que cobram por esse
conhecimento é o futuro, e a promissão do alegre
retorno é o embuste com que o passado captura o
saudoso. Ulisses foi alertado por Circe, a divindade
da reconversão ao estado animal, à qual resistira e
que, em troca disso, fortaleceu-o para resistir a
outras potências da dissolução. Mas a sedução das
Sereias permanece mais poderosa. Ninguém que
ouve sua canção pode escapar a ela. A humanidade
teve que se submeter a terríveis provações até que se
formasse o eu, o carácter idêntico, determinado e
viril do homem, e toda infância ainda é de certa
forma a repetição disso. O esforço para manter a
coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a
tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a
determinação cega de conservá-lo. A embriaguez
narcótica, que expia com um sono parecido à morte
a euforia na qual o eu está suspenso, é uma das mais
antigas cerimónias sociais mediadoras entre a
autoconservação e a autodestruição, uma tentativa
do eu de sobreviver a si mesmo. O medo de perder o
eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo
e a outra vida, o temor da morte e da destruição, está
irmanado a uma promessa de felicidade, que
ameaçava a cada instante a civilização. O caminho
da civilização era o da obediência e do trabalho,
sobre o qual a satisfação não brilha senão como
mera aparência, como beleza destituída de poder. O
pensamento de Ulisses, igualmente hostil à sua
própria morte e à sua própria felicidade, sabe disso.
Ele conhece apenas duas possibilidades de escapar.
Uma é a que ele prescreve aos companheiros. Ele
tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar com
todas as forças de seus músculos. Quem quiser
vencer a provação não deve prestar ouvidos ao
chamado sedutor do irrecuperável e só o conseguirá
se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre
cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm
que olhar para frente e esquecer o que foi posto de
lado. A tendência que impele à distracção, eles têm
que se encarniçar em sublimá-la num esforço
suplementar. É assim que se tornam práticos. A
outra possibilidade é a escolhida pelo próprio
Ulisses, o senhor de terras que faz os outros
trabalharem para ele. Ele escuta, mas amarrado
impotente ao mastro, e quanto maior se torna a
sedução, tanto mais fortemente ele se deixa atar,
exactamente como, muito depois, os burgueses, que
recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior
obstinação quanto mais acessível ela se tornava com
o aumento de seu poderio. O que ele escuta não tem
consequências para ele, a única coisa que consegue
fazer é acenar com a cabeça para que o desatem;
mas é tarde demais, os companheiros – que nada
escutam – só sabem do perigo da canção, não de sua
19
beleza – e o deixam no mastro para salvar a ele e a
si mesmos. Eles reproduzem a vida do opressor
juntamente com a própria vida, e aquele não
consegue mais escapar a seu papel social. Os laços
com que irrevogavelmente se atou à práxis mantêm
ao mesmo tempo as Sereias afastadas da práxis: sua
sedução transforma-se, neutralizada num mero
objecto da contemplação, em arte. Amarrado,
Ulisses assiste a um concerto, a escutar imóvel
como os futuros frequentadores de concertos, e seu
brado de libertação cheio de entusiasmo já ecoa
como um aplauso. Assim a fruição artística e o
trabalho manual já se separam na despedida do
mundo pré-histórico. A epopeia já contém a teoria
correcta. O património cultural está em exacta
correlação com o trabalho comandado, e ambos se
baseiam na inescapável compulsão à dominação
social da natureza.
As medidas tomadas por Ulisses quando seu
navio se aproxima das Sereias pressagiam
alegoricamente a dialéctica do esclarecimento.
Assim como a substituibilidade é a medida da
dominação e o mais poderoso é aquele que pode se
fazer substituir na maioria das funções, assim
também a substituibilidade é o veículo do progresso
e, ao mesmo tempo, da regressão. Na situação dada,
estar excluído do trabalho também significa
mutilação, tanto para os desempregados, quanto
para os que estão no pólo social oposto. Os chefes,
que não precisam mais se ocupar da vida, não têm
mais outra experiência dela senão como substrato e
deixam-se empedernir integralmente no eu que
comanda. O primitivo só tinha experiência da coisa
natural como objecto fugidio do desejo, “mas o
senhor, que interpôs o servo entre a coisa e ele
próprio, só se prende à dependência da coisa e
desfruta-a em sua pureza; o aspecto da
independência, porém, abandona-o ao servo que a
trabalha”.37 Ulisses é substituído no trabalho. Assim
como não pode ceder à tentação de se abandonar,
assim também acaba por renunciar enquanto
proprietário a participar do trabalho e, por fim, até
mesmo a dirigi-lo, enquanto os companheiros,
apesar de toda proximidade às coisas, não podem
desfrutar do trabalho porque este se efectua sob
coacção, desesperadamente, com os sentidos
fechados à força. O servo permanece subjugado no
corpo e na alma, o senhor regride. Nenhuma
dominação conseguiu ainda evitar pagar esse preço,
e a aparência cíclica da história em seu progresso
também se explica por semelhante enfraquecimento,
que é o equivalente do poderio. A humanidade,
cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam
com a divisão do trabalho, é ao mesmo tempo
37 Hegel, Phänomenologie des Geistes, p. 146.
forçada a regredir a estágios antropologicamente
mais primitivos, pois a persistência da dominação
determina, com a facilitação técnica da existência, a
fixação do instinto através de uma repressão mais
forte. A fantasia atrofia-se. A desgraça não está em
que os indivíduos tenham se atrasado relativamente
à sociedade ou à sua produção material. Quando o
desenvolvimento da máquina já se converteu em
desenvolvimento da maquinaria da dominação – de
tal sorte que as tendências técnica e social,
entrelaçadas desde sempre, convergem no
apoderamento total dos homens – os atrasados não
representam meramente a inverdade. Por outro lado,
a adaptação ao poder do progresso envolve o
progresso do poder, levando sempre de novo
àquelas formações recessivas que mostram que não
é o malogro do progresso, mas exactamente o
progresso bem-sucedido que é culpado de seu
próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável
é a irrefreável regressão.
Esta não se limita à experiência do mundo
sensível, que está ligada à proximidade das coisas
mesmas, mas afecta ao mesmo tempo o intelecto
autocrático, que se separa da experiência sensível
para submetê-la. A unificação da função intelectual,
graças à qual se efectua a dominação dos sentidos, a
resignação do pensamento em vista da produção da
unanimidade, significa o empobrecimento do
pensamento bem como da experiência: a separação
dos dois domínios prejudica a ambos. A limitação
do pensamento à organização e à administração,
praticada pelos governantes desde o astucioso
Ulisses até os ingénuos directores-gerais, inclui
também a limitação que acomete os grandes tão
logo não se trate mais apenas da manipulação dos
pequenos. O espírito torna-se de facto o aparelho da
dominação e do autodomínio, como sempre havia
suposto erroneamente a filosofia burguesa. Os
ouvidos moucos, que é o que sobrou aos dóceis
proletários desde os tempos míticos, não superam
em nada a imobilidade do senhor. É da imaturidade
dos dominados que se nutre a hipermaturidade da
sociedade. Quanto mais complicada e mais refinada
a aparelhagem social, económica e científica, para
cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo
sistema de produção, tanto mais empobrecidas as
vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de
trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades
e sua conversão em funções transferem-se da
ciência para o mundo da experiência dos povos e
tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos
anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se
fala, nada mais é senão a incapacidade de poder
ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder
tocar o intocado com as próprias mãos: a nova
20
forma de ofuscamento que vem substituir as formas
míticas superadas. Pela mediação da sociedade total,
que engloba todas as relações e emoções, os homens
se reconvertem exactamente naquilo contra o que se
voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do
eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo
isolamento na colectividade governada pela força.
Os remadores que não podem se falar estão
atrelados a um compasso, assim como o trabalhador
moderno na fábrica, no cinema e no colectivo. São
as condições concretas do trabalho na sociedade que
forçam o conformismo e não as influências
conscientes, as quais por acréscimo embruteceriam
e afastariam da verdade os homens oprimidos. A
impotência dos trabalhadores não é mero pretexto
dos dominantes, mas a consequência lógica da
sociedade industrial, na qual o fado antigo acabou
por se transformar no esforço de a ele escapar.
Essa necessidade lógica, porém, não é
definitiva. Ela permanece presa à dominação, como
seu reflexo e seu instrumento ao mesmo tempo. Por
isso, sua verdade é tão questionável quanto sua
evidência inevitável. É verdade que o pensamento
sempre bastou para designar concretamente seu
próprio carácter questionável. Ele é o servo que o
senhor não pode deter a seu bel-prazer. Ao se
reificar na lei e na organização, quando os homens
se tornaram sedentários e, depois, na economia
mercantil, a dominação teve que limitar-se. O
instrumento ganha autonomia: a instância
mediadora do espírito, independentemente da
vontade dos dirigentes, suaviza o carácter imediato
da injustiça económica. Os instrumentos da
dominação destinados a alcançar a todos – a
linguagem, as armas e por fim as máquinas – devem
se deixar alcançar por todos. É assim que o aspecto
da racionalidade se impõe na dominação como um
aspecto que é também distinto dela. A objectividade
do meio, que o torna universalmente disponível, sua
“objectividade” para todos, já implica a crítica da
dominação da qual o pensamento surgiu, como um
de seus meios. No trajecto da mitologia à logística,
o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre
si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens,
mesmo quando os alimenta. Sob a forma das
máquinas, porém, a ratio alienada move-se em
direcção a uma sociedade que reconcilia o
pensamento solidificado, enquanto aparelhagem
material e aparelhagem intelectual, com o ser vivo
liberado e o relaciona com a própria sociedade como
seu sujeito real. A origem particular do pensamento
e sua perspectiva universal foram sempre
inseparáveis. Hoje, com a metamorfose que
transformou o mundo em indústria, a perspectiva do
universal, a realização social do pensamento, abriuse
tão amplamente que, por causa dela, o
pensamento é negado pelos próprios dominadores
como mera ideologia. A expressão que trai a má-
consciência das cliques, nas quais acaba por
encarnar a necessidade económica, é o facto de que
suas revelações – das intuições do chefe à visão
dinâmica do mundo – não reconhecem mais, em
decidida oposição à apologética burguesa anterior,
os próprios crimes como consequências necessárias
de sistemas de leis. As mentiras mitológicas da
missão e do destino que elas mobilizam em seu
lugar nem sequer chegam a dizer uma total
inverdade: não eram mais as leis objectivas do
mercado que imperavam nas acções dos empresários
e impeliam à catástrofe. Antes pelo contrário, a
decisão consciente dos directores gerais, como
resultante tão fatal quanto os mais cegos
mecanismos de preços, leva a efeito a velha lei do
valor e assim cumpre o destino do capitalismo. Os
próprios dominadores não acreditam em nenhuma
necessidade objectiva, mesmo que às vezes dêem
esse nome a suas maquinações. Eles se arvoram em
engenheiros da história universal. Só os dominados
aceitam como necessidade intangível o processo
que, a cada decreto elevando o nível de vida,
aumenta o grau de sua impotência. Agora que uma
parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos
donos da sociedade é suficiente para assegurar a
subsistência daqueles que ainda se fazem
necessários para o manejo das máquinas, o resto
supérfluo, a massa imensa da população, é adestrado
como uma guarda suplementar do sistema, a serviço
de seus planos grandiosos para o presente e o futuro.
Eles são sustentados como um exército dos
desempregados. Rebaixados ao nível de simples
objectos do sistema administrativo, que preforma
todos os estores da vida moderna, inclusive a
linguagem e a percepção, sua degradação reflecte
para eles a necessidade objectiva contra a qual se
crêem impotentes. Na medida em que cresce a
capacidade de eliminar duradouramente toda
miséria, cresce também desmesuradamente a
miséria enquanto antítese da potência e da
impotência. Nenhum indivíduo é capaz de penetrar a
floresta de cliques e instituições que, dos mais altos
níveis de comando da economia até às últimas
gangues profissionais, zelam pela permanência
ilimitada do status quo. Perante um líder sindical,
para não falar do director da fábrica, o proletário
que por acaso se faça notar não passará de um
número a mais, enquanto que o líder deve por sua
vez tremer diante da possibilidade de sua própria
liquidação.
O absurdo desta situação, em que o poder do
sistema sobre os homens cresce na mesma medida
21
em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia
como obsoleta a razão da sociedade racional. Sua
necessidade não é menos aparente do que a
liberdade dos empresários, que acaba por revelar sua
natureza compulsiva nas lutas e acordos a que não
conseguem escapar. Essa aparência, na qual se
perde a humanidade inteiramente esclarecida, não
pode ser dissipada pelo pensamento que tem de
escolher, enquanto órgão da dominação, entre o
comando e a obediência. Incapaz de escapar ao
envolvimento que o mantém preso à pré-história, ele
consegue no entanto reconhecer na lógica da
alternativa, da consequência e da antinomia, com a
qual se emancipou radicalmente da natureza, a
própria natureza, irreconciliada e alienada de si
mesma. O pensamento, cujos mecanismos de
compulsão reflectem e prolongam a natureza,
também se reflecte a si mesmo, em virtude
justamente de sua consequência inelutável, como a
própria natureza esquecida de si mesma, como
mecanismo de compulsão. É verdade que a
representação é só um instrumento. Pensando, os
homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la
presente38 de modo a ser dominada. Semelhante à
coisa, à ferramenta material – que pegamos e
conservamos em diferentes situações como a
mesma, destacando assim o mundo como o caótico,
multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico
– o conceito é a ferramenta ideal que se encaixa nas
coisas pelo lado por onde se pode pegá-las. Pois o
pensamento se torna ilusório sempre que tenta
renegar sua função separadora, de distanciamento e
objectivação. Toda união mística permanece um
logro, o vestígio impotentemente introvertido da
revolução malbaratada. Mas enquanto o
esclarecimento prova que estava com a razão contra
toda hipostasiação da utopia e proclama impassível
a dominação sob a forma da desunião, a ruptura
entre o sujeito e o objecto que ele proíbe recobrir,
torna-se, ela própria, o índice da inverdade dessa
ruptura e o índice da verdade. A condenação da
superstição significa sempre, ao mesmo tempo, o
progresso da dominação e o seu desnudamento. O
esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza
que se torna perceptível em sua alienação. No
autoconhecimento do espírito como natureza em
desunião consigo mesma, a natureza se chama a si
mesma como antigamente, mas não mais
imediatamente com seu nome presumido, que
significa omnipotência, isto é, como “mana”, mas
como algo de cego, mutilado. A dominação da
38 Vor sich hinstellen = colocar à sua frente. Os autores
jogam com o significado de Vorstellung = representação, que é
uma expressão formada de Stellung = posição, colocação e vor
= à frente. (N. T.)
natureza, sem o que o espírito não existe, consiste
em sucumbir à natureza. Graças à resignação com
que se confessa como dominação e se retrata na
natureza, o espírito perde a pretensão senhorial que
justamente o escraviza à natureza. Se é verdade que
a humanidade na fuga da necessidade, no progresso
e na civilização, não consegue se deter sem
abandonar o próprio conhecimento, pelo menos ela
não mais toma por garantias da liberdade vindoura
os baluartes que levanta contra a necessidade, a
saber, as instituições, as práticas da dominação que
sempre constituíram o revide sobre a sociedade da
submissão da natureza. Todo progresso da
civilização tem renovado, ao mesmo tempo, a
dominação e a perspectiva de seu abrandamento.
Contudo, enquanto a história real se teceu a partir de
um sofrimento real, que de modo algum diminui
proporcionalmente ao crescimento dos meios para
sua eliminação, a concretização desta perspectiva
depende do conceito. Pois ele é não somente,
enquanto ciência, um instrumento que serve para
distanciar os homens da natureza, mas é também,
enquanto tomada de consciência do próprio
pensamento que, sob a forma da ciência, permanece
preso à evolução cega da economia, um instrumento
que permite medir a distância perpetuadora da
injustiça. Graças a essa consciência da natureza no
sujeito, que encerra a verdade ignorada de toda
cultura, o esclarecimento se opõe à dominação em
geral, e o apelo a pôr fim ao esclarecimento também
ressoou nos tempos de Vanini, menos por medo da
ciência exacta do que por ódio ao pensamento
indisciplinado, que escapa à órbita da natureza
confessando-se como o próprio tremor da natureza
diante de si mesma. Os sacerdotes sempre vingaram
o mana no esclarecedor que conciliava o mana
assustando-se com o susto que trazia o seu nome, e
na hybris os áugures do esclarecimento se punham
de acordo com os sacerdotes. Muito antes de Turgot
e d’ Alembert, a forma burguesa do esclarecimento
já se perdera em seu aspecto positivista. Ele jamais
foi imune à tentação de confundir a liberdade com a
busca da autoconservação. A suspensão do conceito
– não importa se isso ocorreu em nome do progresso
ou da cultura, que há muito já haviam se coligado
contra a verdade – abriu caminho à mentira. Esta
encontrava lugar num mundo que se contentava em
verificar sentenças protocolares e conservava o
pensamento – degradado em obra dos grandes
pensadores – como uma espécie de slogan
antiquado, do qual não se pode mais distinguir a
verdade neutralizada como património cultural.
Reconhecer, porém, a presença da dominação
dentro do próprio pensamento como natureza não
reconciliada seria um meio de afrouxar essa
22
necessidade que o próprio socialismo veio a
confirmar precipitadamente como algo de eterno,
fazendo assim uma concessão ao common sense
reaccionário. Ao fazer da necessidade, para todo o
sempre, a base e ao depravar o espírito de maneira
tipicamente idealista como o ápice, ele se agarrou
com excessiva rigidez à herança da filosofia
burguesa. Assim, a relação da necessidade com o
reino da liberdade permaneceria meramente
quantitativa, mecânica, e a natureza – colocada
como algo inteiramente alheio e estranho, como
ocorre na primeira mitologia – tornar-se-ia
totalitária e absorveria a liberdade juntamente com o
socialismo. Com o abandono do pensamento – que,
em sua figura coisificada como matemática,
máquina, organização, se vinga dos homens dele
esquecidos – o esclarecimento abdicou de sua
própria realização. Ao disciplinar tudo o que é único
e individual, ele permitiu que o todo nãocompreendido
se voltasse, enquanto dominação das
coisas, contra o ser e a consciência dos homens.
Mas uma verdadeira práxis revolucionária depende
da intransigência da teoria em face da inconsciência
com que a sociedade deixa que o pensamento se
enrijeça. Não são as condições materiais da
satisfação nem a técnica deixada à solta enquanto
tal, que a colocam em questão. Isso é o que afirmam
os sociólogos, que estão de novo a meditar sobre um
antídoto, ainda que de natureza colectivista, a fim de
dominar o antídoto.39 A culpa é da ofuscação em
que está mergulhada a sociedade. O mítico respeito
científico dos povos pelo dado, que eles no entanto
estão continuamente a criar, acaba por se tornar ele
próprio um facto positivo, a fortaleza diante da qual
a imaginação revolucionária se envergonha de si
mesma como utopismo e degenera numa confiança
dócil na tendência objectiva da história. Enquanto
órgão de semelhante adaptação, enquanto mera
construção de meios, o esclarecimento é tão
destrutivo como o acusam seus inimigos
românticos. Ele só se reencontrará consigo mesmo
quando renunciar ao último acordo com esses
inimigos e tiver a ousadia de superar o falso
absoluto que é o princípio da dominação cega. O
39 “The supreme question which confronts our generation
today – the question to which all other problems are mere1y
corollaries – is whether techno1ogy can be brought under
control... Nobody can be sure of the formula by which this end
can be achieved... We must draw on all the resources to which
access can be had...”
[“A questão suprema que nossa geração enfrenta
actualmente – a questão da qual todos os outros problemas são
meros corolários – é se a tecnologia pode ser colocada sob
controle... Ninguém tem certeza de saber a fórmula pela qual
esse objectivo pode ser alcançado... Temos que nos valer de
todos os recursos a que se possa ter acesso...”] (The Rockfeller
Foundation. A Review for 1943. Nova York, 1944, pp. 33 sg.).
espírito dessa teoria intransigente seria capaz de
inverter a direcção do espírito do progresso
impiedoso, ainda que este estivesse em vias de
atingir sua meta. Seu arauto, Bacon, sonhou com as
inúmeras coisas “que os reis com todos os seus
tesouros não podem comprar, sobre as quais seu
comando não impera, das quais seus espias e
informantes nenhuma notícia trazem”. Como ele
desejava, elas couberam aos burgueses, os herdeiros
esclarecidos do rei. Multiplicando o poder pela
mediação do mercado, a economia burguesa
também multiplicou seus objectos e suas forças a tal
ponto que para sua administração não só não precisa
mais dos reis como também dos burgueses: agora
ela só precisa de todos. Eles aprendem com o poder
das coisas a, afinal, dispensar o poder. O
esclarecimento se consuma e se supera quando os
fins práticos mais próximos se revelam como o
objectivo mais distante finalmente atingido, e os
países, “dos quais seus espias e informantes
nenhuma notícia trazem”, a saber, a natureza
ignorada pela ciência dominadora, são recordados
como os países da origem. Hoje, quando a utopia
baconiana de “imperar na prática sobre a natureza”
se realizou numa escala telúrica, tornou-se
manifesta a essência da coacção que ele atribuía à
natureza não dominada. Era a própria dominação. É
à sua dissolução que pode agora proceder o saber
em que Bacon vê a “superioridade dos homens”.
Mas, em face dessa possibilidade, o esclarecimento
se converte, a serviço do presente, na total
mistificação das massas.
23
EXCURSO I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento
Assim como o episódio das sereias mostra o
entrelaçamento do mito e do trabalho racional,
assim também a Odisseia em seu todo dá
testemunho da dialéctica do esclarecimento.
Sobretudo em seus elementos mais antigos, a
epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras têm
origem na tradição popular. Mas, ao se apoderar dos
mitos, ao “organizá-los”, o espírito homérico entra
em contradição com eles. A assimilação habitual da
epopeia ao mito – que a moderna filologia clássica,
aliás, desfez – mostra-se à crítica filosófica como
uma perfeita ilusão. São dois conceitos distintos,
que marcam duas fases de um processo histórico nos
pontos de sutura da própria narrativa homérica. O
discurso homérico produz a universidade da
linguagem, se já não a pressupõe. Ele dissolve a
ordem hierárquica da sociedade pela forma
exotérica de sua exposição, mesmo e justamente
onde ele a glorifica. Cantar a ira de Aquiles e as
aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica
daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das
aventuras revela-se precisamente como um
protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem
origem naquela auto-afirmação unitária que
encontra seu modelo mais antigo no herói errante.
Na epopeia, que é o oposto histórico-filosófico do
romance, acabam por surgir traços que a
assemelham ao romance, e o cosmo venerável do
mundo homérico pleno de sentido revela-se como
obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças
precisamente à ordem racional na qual ela o reflecte.
O discernimento do elemento esclarecedor
burguês em Homero foi enfatizado pelos intérpretes
da antiguidade ligados ao romantismo tardio alemão
e que seguiam os primeiros escritos de Nietzsche.
Nietzsche conhecia como poucos, desde Hegel, a
dialéctica do esclarecimento. Foi ele que formulou
sua relação contraditória com a dominação. É
preciso “levar o esclarecimento ao povo, para que os
padres se tornem todos padres cheios de má
consciência – é preciso fazer a mesma coisa com o
Estado. Eis a tarefa do esclarecimento: tornar, para
os príncipes e estadistas, todo seu procedimento
uma mentira deliberada. ..”1
Por outro lado, o
esclarecimento sempre foi um meio dos “grandes
virtuosos na arte de governar (Confúcio na China, o
Imperium Romanum, Napoleão, o papado na época
em que se voltara para o poder e não apenas para o
mundo) ... A maneira pela qual as massas se
enganam acerca desse ponto, por exemplo em toda
democracia, é extremamente valiosa: o
apequenamento e a governabilidade dos homens são
1
Nietzsche, Nachlass. Werke. Vol. XIV, p. 206.
buscados como ‘progresso’!”2
Quando essa
duplicidade do esclarecimento se destaca como um
motivo histórico fundamental, seu conceito como
pensamento progressivo é estendido até o início da
história tradicional. Todavia, a relação de Nietzsche
com o esclarecimento, e portanto com Homero,
permanecia ela própria contraditória. Assim ele
enxergava no esclarecimento tanto o movimento
universal do espírito soberano, do qual se sentia o
realizador último, quanto a potência hostil à vida,
“nihilista”. Em seus seguidores pré-fascistas, porém,
apenas o segundo aspecto se conservou e se
perverteu em ideologia. Esta ideologia torna-se a
cega exaltação da vida cega, à qual se entrega a
mesma prática pela qual tudo o que é vivo é
oprimido. Isso está claramente expresso na posição
dos intelectuais fascistas em face de Homero. Eles
farejam na descrição homérica das relações feudais
um elemento democrático, classificam o poema
como uma obra de marinheiros e negociantes e
rejeitam a epopeia jónica como um discurso
demasiado racional e uma comunicação demasiado
corrente. O mau-olhado daqueles que se sentem
identificados com toda dominação que pareça
directa e que proscrevem toda mediação, o
“liberalismo” em qualquer nível, captou algo de
correcto. De facto, as linhas da razão, da
liberalidade, da civilidade burguesa se estendem
incomparavelmente mais longe do que supõem os
historiadores que datam o conceito do burguês a
partir tão-somente do fim do feudalismo medieval.
Ao identificar o burguês justamente onde o
humanismo burguês mais antigo presumia uma
aurora sagrada destinada a legitimá-lo, a reacção
neo-romântica identifica a história universal e o
esclarecimento. A ideologia na moda, que faz da
liquidação do esclarecimento a primeira de suas
causas, presta-lhe uma reverência involuntária e se
vê forçada a reconhecer a presença do pensamento
esclarecido até mesmo no mais remoto passado. É
justamente o vestígio mais antigo desse pensamento
que representa para a má consciência dos espíritos
arcaicos de hoje a ameaça de desfechar mais uma
vez todo o processo que intentaram sufocar e que,
no entanto, ao mesmo tempo levam a cabo de
maneira inconsciente.
Mas o discernimento do carácter
antimitológico e esclarecido de Homero, de sua
oposição à mitologia ctónica, permanece longe da
verdade na medida em que é limitado. Ao serviço da
ideologia repressiva, Rudolf Borchardt, por exemplo
o mais importante e por isso o mais impotente entre
os pensadores esotéricos da indústria pesada alemã,
interrompe cedo demais a análise. Ele não vê que os
2
Ibid., vol. XV, p. 235.
24
poderes originários enaltecidos já representam uma
fase do esclarecimento. Ao denunciar sem maiores
qualificações a epopeia como romance, ele deixa
escapar que a epopeia e o mito têm de facto em
comum dominação e exploração. O elemento
ignóbil que ele condena na epopeia – a mediação e a
circulação – é apenas o desdobramento desse
duvidoso elemento de nobreza que ele diviniza no
mito: a violência nua e crua. A pretensa
autenticidade, o princípio arcaico do sangue e do
sacrifício, já está marcado por algo da má
consciência e da astúcia da dominação, que são
características da renovação nacional que se serve
hoje dos tempos primitivos como recurso
propagandístico. O mito original já contém o
aspecto da mentira que triunfa no carácter
embusteiro do fascismo e que esse imputa ao
esclarecimento. Mas nenhuma obra presta um
testemunho mais eloquente do entrelaçamento do
esclarecimento e do mito do que a obra homérica, o
texto fundamental da civilização europeia. Em
Homero, epopeia e mito, forma e conteúdo, não se
separam simplesmente, mas se confrontam e se
elucidam mutuamente. O dualismo estético atesta a
tendência histórico-filosófica. “O Homero apolíneo
é apenas o continuador daquele processo artístico
humano universal ao qual devemos a
individuação.”3
Os mitos depositaram-se nas diversas
estratificações do texto homérico; mas o seu relato,
a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo
tempo a descrição do trajecto de fuga que o sujeito
empreende diante das potências míticas. Isto já vale
num sentido mais profundo para a Ilíada. A cólera
do filho mítico de uma deusa contra o rei guerreiro e
organizador racional, a inactividade indisciplinada
desse herói, finalmente o facto de que o destino
nacional-helénico e não mais tribal alcança o morto
vitorioso através da lealdade mítica ao companheiro
morto, tudo isso confirma o entrelaçamento da
história e da pré-história. Isso vale tanto mais
drasticamente para a Odisseia quanto mais esta se
aproxima da forma do romance de aventuras. A
oposição do ego sobrevivente às múltiplas
peripécias do destino exprime a oposição do
esclarecimento ao mito. A viagem errante de Tróia a
Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por
um eu fisicamente muito fraco em face das forças da
natureza e que só vem a se formar na consciência de
si. O mundo pré-histórico está secularizado no
espaço que ele atravessa; os antigos demónios
povoam a margem distante e as ilhas do
Mediterrâneo civilizado, forçados a retroceder à
forma do rochedo e da caverna, de onde outrora
3
Nietzsche, op. cit. Vol. IX, p. 289.
emergiram no pavor dos tempos primitivos. Mas as
aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é
a partir delas que se pode ter uma visão de conjunto
e racional do espaço. O náufrago trémulo antecipa o
trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual
nenhum lugar do mar permanece desconhecido, visa
ao mesmo tempo a destituição das potências. Mas a
simples inverdade dos mitos – a saber, que o mar e a
terra na verdade não são povoados de demónios,
efeitos do embuste mágico e da difusão da religião
popular tradicional – torna-se aos olhos do
emancipado um “erro” ou “desvio” comparado à
univocidade do fim que visa em seu esforço de
autoconservação: o retorno à pátria e aos bens
sólidos. As aventuras de que Ulisses sai vitorioso
são todas elas perigosas seduções que desviam o eu
da trajectória de sua lógica. Ele cede sempre a cada
nova sedução, experimenta-a como um aprendiz
incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por
uma tola curiosidade, assim como um actor
experimenta insaciavelmente os seus papéis. “Mas
onde há perigo, cresce também o que salva”:4
o
saber em que consiste sua identidade e que lhe
possibilita sobreviver tira sua substância da
experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que
desvia, que dissolve e o sobrevivente sábio é ao
mesmo tempo aquele que se expõe mais
audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna
duro e forte para a vida. Eis aí o segredo do
processo entre a epopeia e o mito: o eu não constitui
o oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar
em sua rigidez através dessa oposição, unidade que
é tão somente na multiplicidade de tudo aquilo que é
negado por essa unidade.5
Como os heróis de todos
4
Hölderlin, Patmos (edição completa da Inselverlag, texto
estabelecido por Zinkernagel) .Leipzig, s. d., p. 230.
5
Esse processo está directamente documentado no começo
do vigésimo canto. Ulisses observa como as servas se
esgueiram de noite ao encontro dos pretendentes “e o coração
em seu peito ladrava. Assim como a cadela valente anda em
redor de seus frágeis cachorrinhos e ladra para o desconhecido,
instigando-se para a luta, assim também ladrava o coração em
seu peito, enfurecido pela conduta vergonhosa das servas.
Batendo no coração, punia-o com as seguintes palavras:
‘Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que
o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos.
Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste
da caverna onde antevias uma noite horrorosa!” Assim falou.
punindo o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a
calma e quedou inabalável. Ele. porém, continuava a revolverse
para lá e para cá” (XX. 13/24). O sujeito ainda não está
configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos. seu
ânimo e seu coração excitam-se independentemente dele. “No
começo de y, ladra a kradia [kardía, coração] ou ainda o étor
[coração] (as duas palavras são sinónimas, 17.22) e Ulisses
bate no peito. logo contra o coração, e interpela-o. Ele sente o
coração palpitar. logo esta parte de seu corpo excita-se contra
sua vontade. Assim, sua interpelação não é meramente formal
(como em Eurípedes, que interpela a mão e o pé quando estes
25
romances posteriores, Ulisses por assim dizer se
perde a fim de se ganhar. Para alienar-se da natureza
ele se abandona à natureza, com a qual se mede em
toda aventura, e, ironicamente, essa natureza
inexorável que ele comanda triunfa quando ele volta
– inexorável – para casa, como juiz e vingador do
legado dos poderes de que escapou. Na fase
homérica, a identidade do eu é a tal ponto função do
não-idêntico, dos mitos dissociados, inarticulados,
que ela tem que se buscar neles. Ainda é tão fraca a
forma de organização interna da individualidade, o
tempo, que a unidade das aventuras permanece
exterior e sua sequência não passa da mudança
espacial dos cenários, dos sítios das divindades
locais, para onde o arrasta a tempestade. Todas as
vezes que o eu voltou a experimentar historicamente
semelhante enfraquecimento, ou que o modo de
expor pressupôs semelhante fraqueza no leitor, a
narrativa da vida resvalou novamente para a
sucessão de aventuras. Na imagem da viagem, o
tempo histórico se desprende laboriosa e
revogavelmente do espaço, o esquema irrevogável
de todo tempo mítico.
O recurso do eu para sair vencedor das
aventuras, perder-se para se conservar, é a astúcia.
O navegador Ulisses logra as divindades da
natureza, como depois o viajante civilizado logrará
devem entrar em acção), mas o coração age de maneira
autónoma” (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des
Odysseus. Berlim, 1927. p. 189). O ímpeto é equiparado ao
animal que o homem subjuga: a comparação da cadela
pertence ao mesmo nível de experiência a que remete a
imagem dos companheiros metamorfoseados em porcos. O
sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a
natureza tanto dentro dele quanto fora dele, “pune” o coração
exortando-o à paciência e negando-lhe com o olhar posto no
futuro – o presente imediato. Bater no peito tornou-se depois
um gesto de triunfo: com esse gesto, o vencedor exprime o
facto de que sua vitória é sempre uma vitória sobre sua própria
natureza. Esse feito é levado a cabo pela razão
autoconservadora. “...a princípio, o narrador ainda estava
pensando no coração que batia rebelde; superior a este era a
métís [inteligência, discernimento], que é assim claramente
apresentada como uma outra força interna: foi ela que salvou
Ulisses. Os filósofos posteriores tê-la-iam contraposto
enquanto nous [razão, espírito, entendimento] ou logistikon [
(poder) capaz de entender, calcular] à parte da alma desprovida
de entendimento” (Wilamowjtz. op. cit., p. 190). Do “eu” –
autós – só se fala no verso 24: depois que a razão conseguiu
domar o instinto. Se atribuímos à escolha e sequência das
palavras um valor demonstrativo, é preciso admitir que
Homero só vem a considerar o ego idêntico como o resultado
do domínio da natureza intra-humana. Este novo eu estremece
dentro de si, uma coisa. o corpo, depois que o coração foi
punido nele. De qualquer maneira, a justaposição dos
elementos da alma (analisada em detalhe por Wilamowitz)
.que frequentemente se dirigem uns aos outros, parece
confirmar a frouxa e efémera composição do sujeito, cuja
substância consiste unicamente na coordenação desses
elementos.
os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro
coloridas em troca de marfim. É verdade que só às
vezes ele aparece fazendo trocas, a saber, quando se
dão e se recebem os presentes da hospitalidade. O
presente de hospitalidade homérico está a meio
caminho entre a troca e o sacrifício. Como um acto
sacrificial, ele deve pagar pelo sangue incorrido,
seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos
piratas, e selar a paz. Mas, ao mesmo tempo, o
presente anuncia o princípio do equivalente: o
hospedeiro recebe real ou simbolicamente o
equivalente de sua prestação, o hóspede um viático
que, basicamente, deve capacitá-lo a chegar em
casa. Mesmo que o hospedeiro não receba nenhuma
compensação imediata, ele pode ter a certeza de que
ele próprio ou seus parentes serão recebidos da
mesma maneira: como sacrifício às divindades
elementares, o presente é ao mesmo tempo um
seguro rudimentar contra elas. A extensa mas
perigosa navegação na Grécia antiga é o pressuposto
pragmático disto. O próprio Posseidon, o inimigo
elementar de Ulisses, pensa em termos de
equivalência, queixando-se de que aquele receba em
todas as etapas de sua errática viagem mais
presentes do que teria sido sua parte nos despojos de
Tróia, caso Posseidon não lhe houvesse impedido
transportá-la. Em Homero, porém, é possível derivar
semelhante racionalização dos actos sacrificiais
propriamente ditos. Pode-se contar com a
benevolência das divindades conforme a magnitude
das hecatombes. Se a troca é a secularização do
sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como o
esquema mágico da troca racional, uma cerimónia
organizada pelos homens com o fim de dominar os
deuses, que são derrubados exactamente pelo
sistema de veneração de que são objectos.6
6
Contra a interpretação materialista de Nietzsche, Klages
interpretou a conexão entre o sacrifício e a troca num sentido
inteiramente mágico: “A obrigação do sacrifício concerne a
cada um, porque a porção que cada um pode arrebatar à vida e
ao conjunto de seus bens – o suum cuique originário – só é
conseguida num processo contínuo de dar e devolver. Mas não
se trata da troca no sentido da troca de bens usual (que, aliás,
também recebe sua consagração originária da noção de
sacrifício), mas do intercâmbio dos fluidos ou essências pela
entrega de sua própria alma à vida de que tudo depende e se
alimenta” (Ludwig Klages. Der Geist als Widersacher der
Seele. Leipzig, 1932. Vol. Ill. 2.a parte. p. 1409). Contudo. o
carácter dual do sacrifício – o mágico autoabandono do
indivíduo à colectividade, não importa se para seu bem ou para
seu mal, e a autoconservação dessa magia pela técnica –
implica uma contradição objectiva que impele justamente ao
desenvolvimento do elemento racional no sacrifício. Sob o
influxo constante da magia, a racionalidade converte-se
enquanto oomportamento do sacrificante em astúcia. O próprio
Klages, autor de uma entusiástica apologia do mito e do
sacrifício. tropeçou com isso e viu-se forçado a fazer uma
distinção, mesmo na imagem ideal da era pelásgica. entre a
26
A parte que o logro desempenha no sacrifício
é o protótipo das astúcias de Ulisses, e é assim que
muitos de seus estratagemas são armados à maneira
de um sacrifício oferecido às divindades da
natureza.7
As divindades da natureza são logradas
pelo herói do mesmo modo que pelos deuses
solares. Assim os amigos olímpicos de Ulisses
valem-se da estada de Posseidon entre os etíopes –
selvagens que ainda o veneram e lhe oferecem
enormes sacrifícios – para escoltar a salvo seu
protegido. O logro já está envolvido no próprio
sacrifício que Posseidon aceita prazerosamente: a
limitação do amorfo deus do mar a uma localidade
determinada, a área sagrada, limita ao mesmo tempo
sua potência, e, para saciar-se nos bois etíopes, ele
deve em troca renunciar a dar vazão à sua cólera em
Ulisses. Todas as acções sacrificiais humanas,
executadas segundo um plano, logram o deus ao
qual são dirigidas: elas o subordinam ao primado
dos fins humanos, dissolvem seu poderio, e o logro
de que ele é objecto se prolonga sem ruptura no
logro que os sacerdotes incrédulos praticam sobre a
comunidade crédula. A astúcia tem origem no culto.
O próprio Ulisses actua ao mesmo tempo como
vítima e sacerdote. Ao calcular seu próprio
sacrifício, ele efectua a negação da potência a que se
destina esse sacrifício. Ele recupera assim a vida
que deixara entregue. Mas o logro, a astúcia e a
racionalidade não se opõem simplesmente ao
arcaísmo do sacrifício. O que Ulisses faz é tãosomente
elevar à consciência de si a parte de logro
inerente ao sacrifício, que é talvez a razão mais
profunda para o carácter ilusório do mito. A
experiência de que a comunicação simbólica com a
divindade através do sacrifício nada tem de real só
pode ser uma experiência antiquíssima. A
substituição que ocorre no sacrifício, exaltada pelos
defensores de um irracionalismo em moda, não deve
ser separada da divinização do sacrificado, ou seja,
do embuste que é a racionalização sacerdotal do
genuína comunicação com a natureza e a mentira. sem
conseguir no entanto derivar do próprio pensamento mítico um
princípio oposto à aparência da dominação mágica da
natureza, porque essa aparência constitui justamente a essência
do mito. “Já não é mais simplesmente a fé pagã, já é também
superstição pagã quando, por exemplo. o rei-deus tem que
jurar. ao subir ao trono, que fará o sol brilhar e o campo cobrirse
de frutos” (Klages, op. cit., p. 1408).
7
Isso se harmoniza com o facto de que os sacrifícios
humanos propriamente ditos não ocorrem em Homero. A
tendência civilizatória da epopeia manifesta-se na escolha dos
acontecimentos relatados. “With one exception...both Iliad and
Odyssey are completely expurgated of the abomination of
Human Sacrifict” [“Com uma única exceção. ..tanto a Ilíada
quanto a Odisseia estão completamente expurgadas da
abominação do Sacrifício Humano”] (Gilbert Murray, The Rise
of the Greek Epic. Oxford, 1911. p. 150).
assassínio pela apoteose do escolhido. Algo desse
embuste – que erige justamente a pessoa inerme em
portador da substância divina – sempre se pôde
perceber no ego, que deve sua própria existência ao
sacrifício do momento presente ao futuro. Sua
substancialidade é aparência, assim como a
imortalidade da vítima abatida. Não é à toa que
Ulisses foi tido por muitos como uma divindade.
Enquanto os indivíduos forem sacrificados,
enquanto o sacrifício implicar a oposição entre a
colectividade e o indivíduo, a impostura será uma
componente objectiva do sacrifício. Se a fé na
substituição pela vítima sacrificada significa a
reminiscência de algo que não é um aspecto
originário do eu, mas proveniente da história da
dominação, ele se converte para o eu plenamente
desenvolvido numa inverdade: o eu é exactamente o
indivíduo humano ao qual não se credita mais a
força mágica da substituição. A constituição do eu
corta exactamente aquela conexão flutuante com a
natureza que o sacrifício do eu pretende estabelecer.
Todo sacrifício é uma restauração desmentida pela
realidade histórica na qual ela é empreendida. A fé
venerável no sacrifício, porém, já é provavelmente
um esquema inculcado, segundo o qual os
indivíduos subjugados infligem mais uma vez a si
próprios a injustiça que lhes foi infligida, a fim de
poder suportá-la. O sacrifício não salva, por uma
restituição substitutiva, a comunicação imediata
apenas interrompida que os mitólogos de hoje lhe
atribuem, mas, ao contrário, a instituição do
sacrifício é ela própria a marca de uma catástrofe
histórica, um acto de violência que atinge os
homens e a natureza igualmente. A astúcia nada
mais é do que o desdobramento subjectivo dessa
inverdade objectiva do sacrifício que ela vem
substituir. Talvez essa inverdade não tenha sido
sempre apenas uma inverdade. Pode ser que, em
determinada época8
dos tempos primitivos, os
sacrifícios tenham possuído uma espécie de
racionalidade crua, que no entanto já então mal se
podia separar da sede de privilégios. A teoria do
sacrifício predominante hoje em dia relaciona-o à
representação do corpo colectivo, da tribo, à qual
deve refluir como força o sangue derramado do
8
Dificilmente na mais antiga. “O costume do sacrifício
humano. ..é muito mais difundido entre bárbaros e povos
semicivilazados do que entre os verdadeiros selvagens, e é
praticamente desconhecido nos estágios inferiores da cultura.
Em vários povos observou-se que ele foi se difundindo ao
longo do tempo. como, por exemplo, nas Ilhas da Sociedade,
na Polinésia. na India. entre os Astecas. “Relativamente aos
africanos, diz Winwood Read: ‘Quanto mais poderosa a nação,
tanto mais importante o sacrifício’” (Eduard Westermarck,
Ursprung und Entwicklung der Moralbegriffe. Leipzig, 1913,
vol. I, p. 363).
27
membro da tribo. Embora o totemismo já fosse em
sua época uma ideologia, ele marca no entanto um
estado real em que a razão dominante precisava dos
sacrifícios. É um estado de carência arcaica, onde é
difícil distinguir os sacrifícios humanos do
canibalismo. Em certos momentos, com seu
aumento numérico, a colectividade só consegue
sobreviver provando a carne humana. É possível
que, em muitos grupos étnicos ou sociais, o prazer
estivesse ligado ao canibalismo de uma maneira da
qual só o horror da carne humana dá hoje
testemunho. Costumes de épocas posteriores como o
do ver sacrum, onde em tempos de fome uma
geração inteira de adolescentes era forçada a
emigrar em meio a cerimônias rituais, conservam de
uma maneira bastante clara os traços dessa
racionalidade bárbara e transfigurada. O carácter
ilusório dessa racionalidade deve ter se revelado
muito antes da formação das religiões populares:
assim, quando a caça sistemática começou a prover
a tribo de um número suficiente de animais para
tornar supérflua a antropofagia, os caçadores e
colocadores de armadilhas sensatos devem ter
ficado desconcertados com a ordem dos feiticeiros
de que os membros da tribo se deixassem devorar.9
A interpretação mágica e colectiva do sacrifício, que
nega totalmente sua racionalidade, é a sua
racionalização; mas a hipótese esclarecida e linear
de que o que hoje seria ideologia poderia ter sido
outrora verdade é ingénua demais:10 as ideologias
9
Entre os povos antropófagos, como os da África Ocidental,
não podiam “provar dessa iguaria nem as mulheres nem os
adolescentes” (E. Westermarck, op. cit. Leipzig, 1909. Vol II,
p. 459).
10 Wilamowitz coloca o nous em “nítida oposição” ao logos
(Glaube der Hellenen, Berlim, 1931. Vol. I, pp. 41 sg). O mito
é para ele uma “história como a gente se conta a si mesma”,
fábula infantil, inverdade, ou ainda, ao mesmo tempo, a
verdade suprema que não é passível de prova, como em Platão.
Enquanto Wilamowitz está consciente do carácter ilusório dos
mitos, ele equipara-os à poesia. Ou por outra: ele procura-os
em primeiro lugar na linguagem significativa que já está em
contradição objectiva com sua intenção, contradição essa que
ela, enquanto poesia. tenta racionalizar: “O mito é, antes de
mais nada, o discurso falado; a palavra não concerne jamais a
seu conteúdo” (loc. cit.). Ao hipostasiar esse conceito tardio do
mito. que já pressupõe a razão como sua contrapartida
explícita, e polemizando implicitamente com Bachofen – que é
para ele um modismo de que zomba sem, no entanto,
pronunciar seu nome –, ele chega a uma nítida separação da
mitologia e da religião (op. cit., p. 5), na qual o mito aparece,
não como a fase mais antiga, mas justamente como a mais
recente: “Estou tentando seguir o vir-a-ser, as transformações e
a passagem da fé ao mito” (op. cit, p. 1). A obstinada
arrogância departamental do helenista impede-lhe o
discernimento da dialéctica do mito, da religião e do
esclarecimento. “Não compreendo as línguas às quais se
tomaram as palavras tabu e totem;, mana e orenda, mas
considero um caminho viável ater-me aos gregos e pensar
mais recentes são apenas reprises das mais antigas,
que se estendem tanto mais aquém das ideologias
anteriormente conhecidas quanto mais o
desenvolvimento da sociedade de classes desmente
as ideologias anteriormente sancionadas. A
irracionalidade tão invocada do sacrifício exprime
simplesmente o facto de que a prática dos sacrifícios
sobreviveu à sua própria necessidade racional, que
já constituía uma inverdade, isto é, já era particular.
É dessa separação entre a racionalidade e a
irracionalidade do sacrifício que a astúcia se utiliza.
Toda desmitologização tem a forma da experiência
inevitável da inanidade e superfluidade dos
sacrifícios.
Se, por causa de sua irracionalidade, o
princípio do sacrifício se revela efémero, ele perdura
ao mesmo tempo em virtude de sua racionalidade.
Essa se transformou, não desapareceu. O eu
consegue escapar à dissolução na natureza cega,
cuja pretensão o sacrifício não cessa de proclamar.
Mas ao fazer isso ele permanece justamente preso
ao contexto natural como um ser vivo que quer se
afirmar contra um outro ser vivo. A substituição do
sacrifício pela racionalidade autoconservadora não é
menos troca do que o fora o sacrifício. Contudo, o
eu que persiste idêntico e que surge com a
superação do sacrifício volta imediatamente a ser
um ritual sacrificial duro, petrificado, que o homem
se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao
contexto da natureza. Eis aí a verdade da célebre
narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin
se pendurou numa árvore em sacrifício por si
mesmo, e da tese de Klages que todo sacrifício é o
sacrifício do deus ao deus, tal como ainda se
apresenta nesse disfarce monoteísta do mito que é a
grego sobre coisas gregas” (op. cit., p. 10). Como
compatibilizar isso, a saber, a opinião expressa sem maiores
justificativas e segundo a qual “o germe da divindade platónica
já se encontrava no mais antigo helenismo”, com a concepção
histórica defendida por Kirchhoff e adoptada por Wilamowitz,
que vê nos encontros míticos do nostos [retorno, volta à casa,
viagem] o núcleo mais antigo do livro da Odisseia? Isso não é
esclarecido e o próprio conceito do mito, que é um conceito
central, não encontra em Wilamowitz uma articulação
filosófica suficiente. Entretanto, sua resistência ao
irracionalismo que enaltece o mito e sua insistência na
inverdade dos mitos contém um profundo discernimento, que
não devemos ignorar. A aversão ao pensamento primitivo e à
pré-história destaca com clareza tanto maior a tensão que já
havia sempre entre a palavra enganosa e a verdade. 0 que
Wilamowitz censura aos mitos posteriores, o arbítrio da
invenção. já devia estar presente nos mais antigos em virtude
do pseudos [mentira, inverdade, engano] dos sacrifícios. Esse
pseudos tem justamente um parentesco com a divindade
platónica que Wilamowitz faz remontar à fase arcaica do
espírito helénico.
28
cristologia.11 Só que o extracto da mitologia no qual
o eu aparece como sacrifício a si mesmo não
exprime tanto a concepção originária da religião
popular quanto a acolhida do mito na civilização.
Na história das classes, a hostilidade do eu ao
sacrifício incluía um sacrifício do eu, porque seu
preço era a negação da natureza no homem, em vista
da dominação sobre a natureza extra-humana e
sobre os outros homens. Exactamente essa negação,
núcleo de toda racionalidade civilizatória, é a célula
da proliferação da irracionalidade mítica. Com a
negação da natureza no homem, não apenas o telos
da dominação externa da natureza, mas também o
telos da própria vida se torna confuso e opaco. No
instante em que o homem elide a consciência de si
mesmo como natureza, todos os fins para os quais
ele se mantém vivo – o progresso social, o aumento
de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a
própria consciência – tornam-se nulos, e a
entronização do meio como fim, que assume no
capitalismo tardio o carácter de um manifesto
desvario, já é perceptível na proto-história da
subjectividade. O domínio do homem sobre si
mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a
destruição virtual do sujeito ao serviço do qual ele
ocorre; pois a substância dominada, oprimida e
dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão
o ser vivo, cujas funções configuram, elas tãosomente,
as actividades da autoconservação, por
conseguinte exactamente aquilo que na verdade
devia ser conservado. A anti-razão do capitalismo
totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades,
em sua forma objectualizada, determinada pela
dominação, torna impossível a satisfação de
necessidades e impele ao extermínio dos homens –
essa anti-razão está desenvolvida de maneira
prototípica no herói que se furta ao sacrifício
sacrificando-se. A história da civilização é a história
da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história
da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua
vida do que lhe é restituído, mais do que a vida que
ele defende. Isso fica evidente no contexto da falsa
sociedade. Nela cada um é demais e se vê logrado.
Mas é por uma necessidade social que quem quer
que se furte à troca universal, desigual e injusta, que
não renuncie, mas agarre imediatamente o todo
inteiro, por isso mesmo há de perder tudo, até
mesmo o resto miserável que a auto-conservação lhe
concede. Todos esses sacrifícios supérfluos são
necessários: contra o sacrifício. Uma vítima de um
desses sacrifícios é o próprio Ulisses, o eu que está
11 Essa concepção do cristianismo como religião sacrificial
pagã é essencialmente a base do livro de Werner Hegemann:
Geretteter Christus. Potsdam, 1928.
sempre a se refrear12 e assim deixa escapar a vida
que salvou e que só recorda como uma viagem de
erros. No entanto, ele é ao mesmo tempo uma
vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício.
Sua renúncia senhoril é, enquanto luta com o mito,
representativa de uma sociedade que não precisa
mais da renúncia e da dominação: que se tornou
senhora de si, não para fazer violência a si mesma e
aos outros, mas para a reconciliação.
A transformação do sacrifício em
subjectividade tem lugar sob o signo daquela astúcia
que sempre teve uma parte no sacrifício. Na
inverdade da astúcia, a fraude presente no sacrifício
torna-se um elemento do carácter, uma mutilação do
herói astuto arrojado pelo mar13 e cuja fisionomia
está marcada pelos golpes que desferiu contra si
mesmo a fim de se autoconservar. Aí se exprime a
relação entre o espírito e a força física. O portador
do espírito, o que comanda (e é assim que o
astucioso Ulisses é quase sempre apresentado) é,
apesar dos relatos de suas façanhas, sempre
fisicamente mais fraco do que as potências dos
tempos primitivos com as quais deve lutar pela vida.
Os episódios celebrando a pura força física do
aventureiro, o pugilato patrocinado pelos
12 Assim, por exemplo, quando renuncia a matar
imediatamente Polifemo (IX, 302); quando suporta os
maltratos de Antinoo para não se trair (XVII, 460 sgg.). Cf.
além disso o episódio com os ventos (X, 50 sgg.) e a profecia
de Tirésias na primeira nekyia [sacrifício aos mortos] (XI, 105
sgg.), que põe a volta à casa na dependência de sua capacidade
de domar o coração. Todavia, a renúncia de Ulisses ainda não
tem um carácter definitivo, mas apenas de adiamento: as
vinganças que ele se proíbe, no mais das vezes ele as perpetra
depois de uma maneira ainda mais perfeita: O sofredor é o
paciente. Até certo ponto, seu comportamento manifesta
abertamente, como uma finalidade espontânea, o que depois se
esconde na renúncia total e imperativa, para só então tomar
uma força irresistível, a força da subjugação universal da
natureza. Transposta para o sujeito, emancipada do conteúdo
mítico dado, essa subjugação torna-se “objectiva”, dotada da
autonomia de uma coisa em face de toda finalidade particular
do homem; ele se torna uma lei racional universal. Já na
paciência de Ulisses, e de maneira muito nítida após a matança
dos pretendentes, a vingança se transforma num procedimento
jurídico: é justamente a satisfação finita da ânsia mítica que se
torna o instrumento objectivo da dominação. O direito é a
vingança abdicante. Mas, ao se formar com base em algo que
está fora dela: a nostalgia da pátria, essa paciência judicial
adquire traços humanos e até mesmo, quase, os da confiança,
que transcendem a vingança diferida. Depois, na sociedade
burguesa plenamente desenvolvida, as duas coisas são
cobradas: com a ideia da vingança, a nostalgia também
sucumbe ao tabu, o que significa justamente a entronização da
vingança, mediada como vingança do eu contra si mesmo.
13 Os autores jogam com o duplo sentido da palavra alemã
verschlagen. que significa: 1) astuto. ardiloso, manhoso; 2)
arremessado, arrojado (à praia, à costa) pelo mar ou pelo
acaso, bem como com seu parentesco com Schlag [golpe] e
schlagen [bater, golpear] .(N. do T.)
29
pretendentes com o mendigo Iros e o retesamento do
arco, são de natureza desportiva. A autoconservação
e a força física separaram-se: as habilidades atléticas
de Ulisses são as do gentleman, que, livre dos
cuidados práticos, pode treinar de uma maneira ao
mesmo tempo senhoril e controlada. A força
dissociada da autoconservação reverte em proveito
da autoconservação: no agon
14 com o mendigo
fraco, voraz, indisciplinado, ou com os que vivem
no ócio, Ulisses inflige simbolicamente aos
atrasados aquilo que a dominação territorial
organizada há muito já fizera com eles na realidade,
e assim prova sua nobreza. Quando, porém,
encontra potências do mundo primitivo, que não se
domesticaram nem se afrouxaram, suas dificuldades
são maiores. Ele não pode jamais travar luta física
com os poderes míticos que continuam a existir à
margem da civilização. Ele tem que reconhecer
como um. facto os cerimoniais sacrificiais com os
quais acaba sempre por se envolver, pois não tem
força para infringi-los. Em vez disso, faz deles o
pressuposto formal de sua própria decisão racional,
que se realizará sempre, por assim dizer, no interior
do veredicto proto-histórico subjacente à situação
sacrificial. O facto de que o sacrifício antigo se
tornara entrementes ele próprio irracional apresentase
à inteligência do mais fraco como a estupidez do
ritual. Ele permanece aceite, sua letra é estritamente
observada. Mas a sentença que perdeu o sentido
refuta-se a si mesma pelo facto de que seu próprio
estatuto dá margem a que se esquive a ela. É
exactamente o espírito dominador da natureza que
reivindica sempre a superioridade da natureza na
competição. Todo esclarecimento burguês está de
acordo na exigência de sobriedade, realismo,
avaliação correcta de relações de força. O desejo
não deve ser o pai do pensamento. Mas isso deriva
do facto de que, na sociedade de classes, todo
poderio está ligado à consciência incómoda da
própria impotência diante da natureza física e de
seus herdeiros sociais, a maioria. Só a adaptação
conscientemente controlada à natureza a coloca sob
o poder dos fisicamente mais fracos. A ratio, que
recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário.
Ela própria é mimese: a mimese do que está morto.
O espírito subjectivo que exclui a alma da natureza
só domina essa natureza privada da alma imitando
sua rigidez e excluindo-se a si mesmo como
animista. A imitação se põe ao serviço da
dominação na medida em que até o homem se
transforma num antropomorfismo para o homem. O
esquema da astúcia ulissiana é a dominação da
natureza mediante essa assimilação. A avaliação das
relações de força, que de antemão coloca a
14 Palavra grega que significa “luta”. (N. do T.)
sobrevivência na dependência por assim dizer da
confissão da própria derrota e virtualmente da
morte, já contém in nuce o princípio da desilusão
burguesa, o esquema exterior para a interiorização
do sacrifício, a renúncia. O astucioso só sobrevive
ao preço de seu próprio sonho, a quem ele faz as
contas desencantando-se a si mesmo bem como aos
poderes exteriores. Ele jamais pode ter o todo; tem
sempre de saber esperar, ter paciência, renunciar;
não pode provar do lótus nem tampouco da carne
dos bois de Hipérion; e quando guia sua nau por
entre os rochedos, tem de incluir em seu cálculo a
perda dos companheiros que Cila arranca ao navio.
Ele tem que se virar, eis aí sua maneira de
sobreviver, e toda a glória que ele próprio e os
outros aí lhe concedem confirma apenas que a
dignidade de herói só é conquistada humilhando a
ânsia de uma felicidade total, universal, indivisa.
A fórmula para a astúcia de Ulisses consiste
em fazer com que o espírito instrumental,
amoldando-se resignadamente à natureza, dê a esta
o que a ela pertence e assim justamente a logre. Os
monstros míticos em cujo poder ele cai representam
sempre, por assim dizer, contratos petrificados,
reivindicações pré-históricas. É assim que a religião
popular antiga, numa fase avançada da era
patriarcal, se apresenta em suas relíquias dispersas:
sob o céu olímpico, elas se tornaram figuras do
destino abstracto, da necessidade distante dos
sentidos. A impossibilidade, por exemplo, de
escolher uma rota diversa da que passa por entre
Cila e Caríbdis pode ser compreendida de maneira
racionalista como a transformação mítica da
superioridade das correntes marítimas sobre as
pequenas embarcações da antiguidade. Mas, nessa
transferência objectualizadora operada pelo mito, a
relação natural entre força e impotência já assumiu o
carácter de uma relação jurídica. Cila e Caríbdis têm
o direito de reclamar aquilo que lhes cai entre os
dentes, assim como Circe tem o direito de
metamorfosear quem quer que não seja imune à sua
mágica, ou Polifemo o direito de devorar seus
hóspedes. Cada uma das figuras míticas está
obrigada a fazer sempre a mesma coisa. Todas
consistem na repetição: o malogro desta seria seu
fim. Todas têm os traços daquilo que, nos mitos
punitivos do inferno – os mitos de Tântalo, de
Sísifo, das Danaides –, se fundamenta no veredicto
do Olimpo. São figuras da compulsão: as
atrocidades que cometem representam a maldição
que pesa sobre elas. A inevitabilidade mítica é
definida pela equivalência entre essa maldição, o
crime que a expia e a culpa que dele resulta e
reproduz a maldição. A justiça traz até hoje a marca
desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo faz
30
reparação ao precedente e ajuda assim a instalar
como lei as relações de culpa. É a isso que se opõe
Ulisses. O eu representa a universalidade racional
contra a inevitabilidade do destino. Mas, como ele
encontra o universal e o inevitável entrelaçados, sua
racionalidade assume necessariamente uma forma
restritiva, a da excepção. Ele está obrigado a se
subtrair às relações jurídicas que o encerram e o
ameaçam e que, de certa maneira, estão inscritas em
cada figura mítica. Ele satisfaz o estatuto jurídico de
tal sorte que este perde seu poder sobre ele, na
medida mesmo em que lhe concede esse poder. É
possível ouvir as Sereias e a elas não sucumbir: não
se pode desafiá-las. Desafio e cegueira são uma só
coisa, e quem as desafia está por isso mesmo
entregue ao mito ao qual se expõe. A astúcia,
porém, é o desafio que se tornou racional. Ulisses
não tenta tomar um caminho diverso do que passa
pela ilha das Sereias. Tampouco tenta, por exemplo,
alardear a superioridade de seu saber e escutar
livremente as sedutoras, na presunção de que sua
liberdade constitua protecção suficiente. Ele se
apequena, o navio toma sua rota predeterminada e
fatal, e ele se dá conta de que continua como
ouvinte entregue à natureza, por mais que se
distancie conscientemente dela. Ele cumpre o
contrato de sua servidão15 e se debate amarrado ao
mastro para se precipitar nos braços das corruptoras.
Mas ele descobriu no contrato uma lacuna pela qual
escapa às suas normas, cumprindo-as. O contrato
antiquíssimo não prevê se o navegante que passa ao
largo deve escutar a canção amarrado ou
desamarrado. O costume de amarrar os prisioneiros
pertence a uma fase em que eles não são mais
sumariamente executados. Ulisses reconhece a
superioridade arcaica da canção deixando-se,
tecnicamente esclarecido, amarrar. Ele se inclina à
canção do prazer e frustra-a como frustra a morte. O
ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como
qualquer outro. Só que ele arranjou um modo de,
entregando-se, não ficar entregue a elas. Apesar da
violência de seu desejo, que reflecte a violência das
próprias semideusas, ele não pode reunir-se a elas,
porque os companheiros a remar, com os ouvidos
tapados de cera, estão surdos não apenas para as
semideusas, mas também para o grito desesperado
de seu comandante. As Sereias recebem sua parte,
mas, na proto-história da burguesia, isto já se
neutralizou na nostalgia de quem passa ao largo. A
epopeia cala-se acerca do que acontece às cantoras
depois que o navio desapareceu. Mas, na tragédia,
deveria ter sido sua última hora, como foi a da
15 Os autores jogam com a origem comum das palavras
Hörender [ouvinte, o que escuta] e Hörigkeit [servidão] .(N.
do T.)
Esfinge quando Édipo resolveu o enigma,
cumprindo sua ordem e assim precipitando sua
queda. Pois o direito das figuras míticas, que é o
direito do mais forte, vive tão-somente da
impossibilidade de cumprir seu estatuto. Se este é
satisfeito, então tudo acabou para os mitos até sua
mais remota posteridade. Desde o feliz e malogrado
encontro de Ulisses com as Sereias, todas as
canções ficaram afectadas, e a música ocidental
inteira labora no contra-senso que representa o canto
na civilização, mas que, ao mesmo tempo, constitui
de novo a força motora de toda arte musical.
Com a dissolução do contrato através de sua
observância literal, altera-se a posição histórica da
linguagem: ela começa a transformar-se em
designação. O destino mítico, fatum, e a palavra
falada eram uma só coisa. A esfera das
representações a que pertencem as sentenças do
destino executadas invariavelmente pelas figuras
míticas ainda não conhece a distinção entre palavra
e objecto. A palavra deve ter um poderio imediato
sobre a coisa, expressão e intenção confluem. A
astúcia, contudo, consiste em explorar a distinção,
agarrando-se à palavra, para modificar a coisa.
Surge assim a consciência da intenção: premido pela
necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao
descobrir que a palavra idêntica pode significar
coisas diferentes. Como o nome Oudeis16 pode ser
atribuído tanto ao herói quanto a ninguém, Ulisses
consegue romper o encanto do nome. As palavras
imutáveis permanecem fórmulas para o contexto
inexorável da natureza. Na magia, sua rigidez já
devia fazer face à rigidez do destino que ao mesmo
tempo se reflectia nela. Isso já implicava a oposição
entre a palavra e aquilo ao qual ela se assimilava.
Na fase homérica, essa oposição torna-se
determinante. Ulisses descobre nas palavras o que
na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se
chama formalismo: o preço de sua validade
permanente é o facto de que elas se distanciam do
conteúdo que as preenche em cada caso e que, a
distância, se referem a todo conteúdo possível, tanto
a ninguém quanto ao próprio Ulisses. É do
formalismo dos nomes e estatutos míticos, que
querem reger com a mesma indiferença da natureza
os homens e a história, que surge o nominalismo, o
protótipo do pensamento burguês. A astúcia da
autoconservação vive do processo que rege a
relação entre a palavra e a coisa. Os dois actos
contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo
– sua obediência ao nome e seu repúdio dele – são,
porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz
16 Oudeis, palavra grega que significa “ninguém” e que é o
nome que Ulisses se dá ao falar com ciclope Polifemo. (N. do
T.)
31
profissão de si mesmo negando-se como Ninguém,
ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer.
Essa adaptação pela linguagem ao que está morto
contém o esquema da matemática moderna.
A astúcia como meio de uma troca onde tudo
se passa correctamente, onde o contrato é respeitado
e, no entanto, o parceiro é logrado, remete a um
modelo económico que aparece, senão nos tempos
míticos, pelo menos na aurora da antiguidade: é a
antiquíssima “troca ocasional” entre economias
domésticas fechadas. “Os excedentes são trocados
ocasionalmente, mas a principal fonte do
abastecimento é a autoprodução.”17 O
comportamento do aventureiro Ulisses lembra o
comportamento do trocador ocasional. Mesmo sob a
figura patética do mendigo, o homem feudal exibe
os traços do comerciante oriental18 que retorna com
riquezas inauditas, porque, pela primeira vez e
opondo-se à tradição, saiu do âmbito da economia
doméstica e “embarcou”. Do ponto de vista
económico, o elemento aventureiro de seus
empreendimentos nada mais é do que o aspecto
irracional de sua ratio em face da forma económica
tradicionalista ainda predominante. Essa
irracionalidade da ratio sedimentou-se na astúcia
enquanto assimilação da razão burguesa – àquela
irrazão que vem a seu encontro como um poder
ainda maior. O solitário astucioso já é o homo
oeconomicus, ao qual se assemelham todos os seres
racionais: por isso, a Odisseia já é uma robinsonada.
Os dois náufragos prototípicos fazem de sua
fraqueza – a fraqueza do indivíduo que se separa da
colectividade – sua força social. Entregues ao acaso
das ondas, desamparadamente isolados, seu
isolamento dita-lhes a perseguição implacável do
interesse atomístico. Eles personificam o princípio
da economia capitalista, antes mesmo que esta
recorra aos serviços de um trabalhador: mas os bens
que salvam do naufrágio para empregar em um novo
empreendimento transfiguram a verdade segundo a
qual o empresário jamais enfrentou a competição
unicamente com o labor de suas mãos. Sua
impotência em face da natureza já funciona como
justificação ideológica de sua supremacia social. O
desamparo de Ulisses diante da fúria do mar já soa
como a legitimação do viajante que se enriquece à
custa do nativo. Foi isso que a teoria económica
burguesa fixou posteriormente no conceito do risco:
a possibilidade da ruína é a justificação moral do
17 Max Weber. Wirtschaftsgeschichte. Munique e Leipzig,
1924, p. 3.
18 Victor Bérard ressaltou com particular ênfase (mas não, é
verdade, sem alguma construção apócrifa) o elemento semítico
da Odisseia. Cf. o capítulo: “Les Phéniciens et l’Odyssée” em
sua Résurrection d’Homer. Paris, 1930, pp. 111 sgg.
lucro. Do ponto de vista das sociedades de troca
desenvolvidas e dos indivíduos que as compõem, as
aventuras de Ulisses nada mais são do que a
descrição dos riscos que constituem o caminho para
o sucesso. Ulisses vive segundo o princípio
primordial que constituiu outrora a sociedade
burguesa. A escolha era entre lograr ou arruinar-se.
O logro era a marca da ratio, traindo sua
particularidade. Por isso a socialização universal,
esboçada na história de Ulisses, o navegante do
mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já
implica desde a origem a solidão absoluta, que se
torna manifesta ao fim da era burguesa. Socialização
radical significa alienação radical. Ulisses e
Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele
a percorre, este a produz. Ambos só a realizam em
total separação de todos os demais homens. Estes só
vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada,
como inimigos ou como pontos de apoio, sempre
como instrumentos, como coisas.
Uma das primeiras aventuras do nostos19
propriamente dito remonta, é verdade, muito mais
alto, e até mesmo muito aquém da era bárbara das
caretas dos demónios e das divindades mágicas.
Trata-se da narrativa dos lotófagos, dos comedores
de lótus. Quem prova de sua comida sucumbe como
os que escutam as Sereias ou como os que foram
tocados pela varinha de Circe. Todavia, nenhum mal
é feito a suas vítimas: “Os lotófagos nenhum mal
fizeram aos homens de nosso grupo.”20 A única
ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade.
A maldição condena-os unicamente ao estado
primitivo sem trabalho e sem luta na “fértil
campina”:21 “ora, quem saboreava a planta do lótus,
mais doce do que o mel, não pensava mais em trazer
notícias nem em voltar, mas só queria ficar aí, na
companhia dos lotófagos, colhendo o lótus, e
esquecido da pátria”.22 Essa cena idílica – que
lembra a felicidade dos narcóticos, de que se servem
as camadas oprimidas nas sociedades endurecidas, a
fim de suportar o insuportável –, essa cena, a razão
autoconservadora não pode admiti-la entre os seus.
Esse idílio é na verdade a mera aparência da
felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre
como a vida dos animais e no melhor dos casos a
ausência da consciência da infelicidade. Mas a
felicidade encerra a verdade. Ela é essencialmente
um resultado e se desenvolve na superação do
sofrimento. E essa a justificação do herói sofredor,
que não sofre permanecer entre os lotófagos. Ele
19 Nostos, palavra grega que significa retorno, volta à casa,
viagem (cf. “nostalgia”). (N. do T.)
20 Odisseia IX, 92 sg.
21 Ibid. XXIII, 311.
22 Ibid. IX, 94 sgg.
32
defende contra estes a própria causa deles, a
realização da utopia, através do trabalho histórico,
pois o simples facto de se demorar na imagem da
beatitude é suficiente para roubar-lhe o vigor. Mas
ao perceber essa justificação, a racionalidade, isto é,
Ulisses, entra forçosamente no contexto da injustiça.
Enquanto imediata, sua própria acção resulta em
favor da dominação. Essa felicidade “nos limites do
mundo”23 é tão inadmissível para a razão
autoconservadora quanto a felicidade mais perigosa
de fases posteriores. Os preguiçosos são despertados
e transportados para as galeras: “mas eu os trouxe
de novo à força, debulhados em lágrimas, para as
naus; arrastei-os para os navios espaçosos e amarreios
debaixo dos bancos.”24 O lótus é um alimento
oriental. Ainda hoje, cortado em finas fatias,
desempenha seu papel na cozinha chinesa e indiana.
A tentação que lhe é atribuída, não é talvez, outra
coisa senão a da regressão à fase da colecta dos
frutos da terra25 e do mar, anterior à agricultura, à
pecuária e mesmo à caça, em suma, a toda a
produção. Não é certamente por acaso que a epopeia
liga a imagem do país de Cocanha à alimentação de
flores, mesmo que se trate de flores nas quais nada
de semelhante se possa hoje notar. O hábito de
comer flores – que ainda se pratica à sobremesa no
Próximo Oriente e que as crianças europeias
conhecem das massas assadas com leite de rosas e
das violetas cristalizadas – é a promessa de um
estado em que a reprodução da vida se tornou
independente da autoconservação consciente e o
prazer de se fartar se tornou independente da
utilidade de uma alimentação planejada. A
lembrança da felicidade mais remota e mais antiga,
que desperta o sentido do olfacto, ainda está
intimamente ligada à proximidade extrema da
incorporação. Ela remete à proto-história. Não
importa quantos tormentos os homens aí padeceram,
eles não conseguem imaginar nenhuma felicidade
que não se nutra da imagem dessa proto-história:
“assim prosseguimos viagem, com o coração
amargurado”.26
A próxima figura à qual o astucioso Ulisses é
arremessado – em Homero ser arremessado e ser
astucioso são equivalentes27 –, o ciclope Polifemo,
23 Jacob Burckhahrdt. Griechische Kulturgeschichte,
Stuttgart. s. d. Vol. III. p.95.
24 Odisseia IX, 98 sg.
25 Na mitologia indiana, Lótus é a deusa da terra (cf.
Heinrich Zimmer. Maja. Stuttgart e Berlim, 1936, pp. 105
sgg.). Se há uma conexão com a tradição mítica em que se
baseia o velho nostos homérico, convém caracterizar também
o encontro com os 1otófagos como uma etapa no confronto
com as potências ctónicas.
26 Odisseia, IX. 105.
27 V. n. 12. (N. do T.)
traz em seu olho do tamanho de uma roda o vestígio
do mesmo mundo pré-histórico: esse olho único
lembra o nariz e a boca, mais primitivos do que a
simetria dos olhos e dos ouvidos,28 que, na unidade
de duas percepções coincidentes, vem possibilitar a
identificação, a profundidade e a objectualidade em
geral. Mas ele representa, no entanto, em face dos
lotófagos, uma era posterior, a era propriamente
bárbara, que é a dos caçadores e pastores. Ele chama
os ciclopes de “celerados sem lei”,29 porque eles (e
nisso há algo que se assemelha a uma secreta
confissão de culpa da própria civilização)
“confiando no poderio dos deuses imortais, nada
cultivam com as mãos, plantando ou lavrando; mas,
sem ninguém para plantar ou cultivar, crescem as
plantas, tanto o trigo quanto a cevada e as nobres
cepas, carregadas de grandes cachos, que a chuva de
Crônion vem nutrir”.30 A abundância não precisa da
lei e a acusação civilizatória da anarquia soa quase
como uma denúncia da abundância: “aí não há nem
leis nem assembleias do povo, mas habitam em
volta dos penhascos das montanhas em grutas
côncavas; e cada um dita arbitrariamente a lei às
mulheres e às crianças; e ninguém tem consideração
pelos outros”.31 Já é uma sociedade patriarcal,
baseada na opressão dos fisicamente mais fracos,
mas ainda não organizada segundo o critério da
propriedade fixa e de sua hierarquia; e é a ausência
de vínculos entre os habitantes das cavernas que
explica a ausência de uma lei objectiva e assim
justifica a censura homérica da desconsideração
recíproca, característica do estado selvagem. Ao
mesmo tempo, a fidelidade pragmática do narrador
desmente numa passagem posterior seu juízo
civilizado: toda a tribo atende ao grito de pavor do
ciclope cegado para ajudá-lo, e apenas o
estratagema que Ulisses arma com seu nome impede
os tolos de darem assistência ao seu semelhante.32 A
estupidez e a ausência de leis aparecem como o
mesmo atributo: quando Homero chama o ciclope
de “monstro que pensa sem lei”,33 isso não significa
meramente que ele não respeite em seu pensamento
as leis da civilidade. Isso significa também que o
seu próprio pensamento é sem lei, assistemático,
rapsódico, quando por exemplo não consegue
resolver o singelo problema de raciocínio, que
consiste em saber de que maneira seus hóspedes
não-indesejáveis conseguem escapar da caverna (a
saber, agarrando-se ao ventre dos carneiros, ao invés
28 Segundo Wilamowitz, os ciclopes são “na verdade
animais” (Glaube der Hellenen. Vol. I, p. 14).
29 Odisseia. IX, 106.
30 Ibid.. 107 sgg.
31 Ibid.. 112 sgg.
32 Cf. ibid.. 403 sgg.
33 Ibid., 428.
33
de cavalgá-los) e também quando não se dá conta do
sofístico duplo sentido do nome falso de Ulisses.
Polifemo, que confia no poderio dos imortais, é no
entanto um antropófago e é por isso que, apesar
dessa confiança, recusa reverência aos deuses: “tu és
louco, estranho, ou vens de longe” – em épocas
posteriores, a distinção entre o louco e o estranho
era menos escrupulosa e o desconhecimento do
costume, assim como todo modo de ser estranho,
eram imediatamente tachados de loucura –, “tu que
me exortas a temer os deuses e sua vingança! Pois
de nada valem para os ciclopes o trovejador Zeus
Crônion, nem os deuses bem-aventurados, pois
somos muito superiores!”34 “Superiores”, escarnece
o narrador Ulisses. Mas o que ele de facto queria
dizer era: mais velhos. O poderio do sistema solar é
reconhecido, porém mais ou menos assim como um
senhor feudal reconhece o poderio da riqueza
burguesa, embora secretamente se sinta como o
mais nobre, sem perceber que a injustiça que lhe foi
feita é da mesma ordem que a injustiça que ele
próprio representa. Posseidon, o deus marinho
próximo, pai de Polifemo e inimigo de Ulisses, é
mais velho do que Zeus, o deus celeste universal e
distante, e é por assim dizer sobre o dorso do sujeito
que é decidido o conflito entre a religião popular
elementarista e a religião logocêntrica da lei. Mas o
Polifemo sem lei não é o simples vilão em que o
transformam os tabus da civilização, quando o
apresentam no mundo fabuloso da infância
esclarecida como o monstro Golias. No domínio
restrito, em que sua autoconservação levou-o a
adoptar uma certa ordem e costume, não lhe falta
um aspecto conciliante. Quando achega os filhotes
ao ubre de suas ovelhas e cabras, esse acto prático
implica o desvelo pela própria criatura. E o famoso
discurso que o gigante faz, depois de ficar cego, ao
carneiro-mestre (que chama de seu amigo e de quem
indaga por que agora abandona por último a caverna
e se por acaso lhe faz pena o infortúnio de seu
senhor) atinge uma intensidade de emoção que só é
atingida de novo na passagem que representa o
ponto culminante da Odisseia, quando Ulisses,
retornando a casa, é reconhecido pelo velho cão
Argos, em que pese a abominável crueza com que
termina o discurso. O comportamento do gigante
ainda não se objectivou na forma do carácter. Ele
responde às súplicas de Ulisses não simplesmente
com a expressão do ódio selvagem, mas apenas com
a recusa da lei que ainda não o alcançou realmente:
ele não quer poupar Ulisses e os seus companheiros:
“se meu coração não mandar”,35 e não é certo se ele
realmente, como afirma Ulisses em sua narrativa,
34 Ibid., 273 sgg.
35 Ibid., 278.
fala com malícia. De maneira jactanciosa e
arrebatada, o embriagado promete presentes de
hospitalidade36 a Ulisses e só a ideia de Ulisses
como Ninguém leva-o ao pérfido pensamento de
cobrar o presente de hospitalidade devorando por
último o chefe – talvez porque esse se denominou
Ninguém e por isso não conta como existente para a
fraca inteligência do ciclope.37 A brutalidade física
desse ente monstruosamente forte é a sua confiança
inconstante. Por isso o cumprimento do estatuto
mítico, que é sempre injustiça para o condenado,
torna-se injustiça também para o poder natural que
estabelece o direito. Polifemo e os outros monstros
ludibriados por Ulisses já são os modelos para os
diabos estúpidos da era cristã até Shylock e
Mefistófeles. A estupidez do gigante, substância de
sua bárbara brutalidade enquanto tudo corre bem
para ele, passa a representar algo de melhor tão logo
é esmagada por quem deveria saber melhor. Ulisses
insinua-se na confiança de Polifemo e assim ao
direito de presa à carne humana que ele representa,
segundo o esquema da astúcia que destrói o estatuto
cumprindo-o: “Toma, ciclope, e bebe; o vinho vai
bem com a carne humana; vê que delícia é a bebida
guardada, no navio que nos trouxe”,38 recomenda o
representante da cultura.
A assimilação da ratio ao seu contrário, um
estado de consciência a partir do qual ainda não se
cristalizou uma identidade estável e representado
pelo gigante trapalhão, completa-se, porém, na
astúcia do nome. Ela pertence a um folclore muito
difundido. Em grego trata-se de um jogo de
palavras; na única palavra que se conserva separamse
o nome – Odysseus (Ulisses) – e a intenção –
Ninguém. Para ouvidos modernos, Odysseus e
Oudeis ainda têm um som semelhante, e é fácil
imaginar que, em um dos dialectos em que se
transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do
rei desta ilha era de facto um homófono do nome de
Ninguém. O cálculo que Ulisses faz de que
Polifemo, indagado por sua tribo quanto ao nome do
culpado, responderia dizendo: “Ninguém” e assim
ajudaria a ocultar o acontecido e a subtrair o
culpado à perseguição, dá a impressão de ser uma
transparente racionalização. Na verdade, o sujeito
Ulisses renega a própria identidade que o transforma
em sujeito e preserva a vida por uma imitação mim
ética do amorfo. Ele se denomina Ninguém porque
Polifemo não é um eu e a confusão do nome e da
coisa impede ao bárbaro logrado escapar à
36 Cf. ibid., 355 sgg.
37 “Finalmente a habitual puerilidade do demente poderia ser
considerada à luz de um humor natimorto” (Klages, ap. cit.,
1469).
38 Odisseia, loc. cit., 347 sg.
34
armadilha: seu grito, na medida em que é um grito
por vingança, permanece magicamente ligado ao
nome daquele de quem se quer vingar, e esse nome
condena o grito à impotência. Pois ao introduzir no
nome a intenção, Ulisses o subtraiu ao domínio da
magia. Mas sua auto-afirmação é, como na epopeia
inteira, como em toda civilização, uma
autodenegação. Desse modo o eu cai precisamente
no círculo compulsivo da necessidade natural ao
qual tentava escapar pela assimilação. Quem, para
se salvar, se denomina Ninguém e manipula os
processos de assimilação ao estado natural como um
meio de dominar a natureza sucumbe à hybris. O
astucioso Ulisses não pode agir de outro modo: ao
fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo
gigante, não se contenta em zombar dele, mas revela
seu verdadeiro nome e sua origem, como se o
mundo primitivo, ao qual sempre acaba por escapar,
ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se
chamado de Ninguém, devesse temer voltar a ser
Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade
graças à palavra mágica, que a identidade racional
acabara de substituir. Os amigos tentam em vão
preservá-lo da tolice de proclamar sua sagacidade, e
é por um fio que escapa às rochas arremessadas por
Polifemo. Ao mesmo tempo, foi a designação de seu
nome que provavelmente atraiu para ele o ódio de
Posseidon – que não se pode dizer que tenha sido
apresentado como omnisciente. A astúcia, que para
o inteligente consiste em assumir a aparência da
estupidez, converte-se em estupidez tão pronto ele
renuncie a essa aparência. Eis aí a dialéctica da
eloquência. Da antiguidade ao fascismo, tem-se
censurado a Homero o palavrório de seus heróis e
do próprio narrador. Mas o Jónio revelou-se
profeticamente superior tanto aos antigos quanto aos
jovens espartanos ao mostrar a fatalidade que o
discurso do astucioso – o mediador – faz recair
sobre ele. O discurso que suplanta a força física é
incapaz de se deter. Seu fluxo acompanha como
uma paródia a corrente da consciência, o próprio
pensamento, cuja autonomia imperturbável assume
um aspecto de loucura – o aspecto maníaco –
quando entra na realidade pelo discurso, como se o
pensamento e a realidade fossem homónimos, ao
passo que o pensamento só tem poder sobre a
realidade pela distância. Essa distância, porém, é ao
mesmo tempo sofrimento. Por isso, o inteligente –
contrariamente ao provérbio está sempre tentado a
falar demais. Ele está objectivamente condicionado
pelo medo de que a frágil vantagem da palavra
sobre a força poderá lhe ser de novo tomada pela
força se não se agarrar o tempo todo a ela. Pois a
palavra sabe-se mais fraca do que a natureza que ela
enganou. Quem fala demais deixa transparecer a
força e a injustiça como seu próprio princípio e
assim excita sempre aquele que deve ser temido a
cometer exactamente a acção temida. A mítica
compulsão da palavra nos tempos pré-históricos
perpetua-se na desgraça que a palavra esclarecida
atrai para si própria. Oudeis, que se dá
compulsivamente a conhecer como Ulisses, já
apresenta os traços característicos do judeu que,
mesmo na angústia da morte, se gaba da
superioridade que dela resulta; e a vingança contra o
mediador não aparece só ao fim da sociedade
burguesa, mas já está em seu começo como a utopia
negativa à qual toda forma de violência sempre
tende.
Diferentemente das lendas que narram a fuga
do mito como a fuga da barbárie do canibalismo, a
história mágica de Circe remete à fase mágica
propriamente dita. A magia desintegra o eu que
volta a cair em seu poder e assim se vê rebaixado a
uma espécie biológica mais antiga. Mas a força
dessa dissolução é, mais uma vez, a do
esquecimento. Ela se apodera ao mesmo tempo da
ordem fixa do tempo e da vontade fixa do sujeito
que se orienta por essa ordem. Circe induz
sedutoramente os homens a se abandonarem à
pulsão instintiva: a forma animal dos seduzidos foi
sempre relacionada com isso e Circe transformou-se
no protótipo da hetaira, imagem essa motivada
provavelmente pelos versos de Hermes que lhe
atribuíam como um facto óbvio a iniciativa erótica:
“Assustada, ela instará contigo a que partilhes de teu
leito. Não resistas diante do leito da deusa.”39 A
marca distintiva de Circe é a ambiguidade, ao
aparecer na acção, sucessivamente, como corruptora
e benfeitora: ela é a filha de Hélio e a neta de
Oceano40. Nela estão inseparavelmente mesclados
os elementos do fogo e da água, e é essa
indivisibilidade, no sentido de uma oposição ao
primado de um aspecto determinado da natureza –
seja o matriarcal, seja o patriarcal –, que constitui a
essência da promiscuidade, o hetáirico, que ainda
brilha no olhar da prostituta, o húmido reflexo do
astro.41 A hetaira distribui a felicidade e destrói a
autonomia de quem fez feliz, eis aí sua
ambiguidade. Mas o indivíduo, ela não o destrói
necessariamente: ela fixa uma forma de vida mais
antiga42. Como os lotófagos, Circe não fere
mortalmente seus hóspedes, e até mesmo aqueles
que ela transformou em animais selvagens são
39 Ibid., X, 296/7.
40 Cf. ibid., 138 sg. Cf. também F. C. Bauer, Symbolik und
Mythologie Stuttgart. 1824. Vol. I, p. 47.
41 Cf. Baudelaire, Le vin du solitaire, Les fleurs du mal.
42 Cf. J. A. K. Thompson, Studies in the Odyssey. Oxford,
1914, p. 153.
35
pacíficos: “Em volta viam-se também lobos
monteses e leões de grandes jubas que ela própria
enfeitiçara com suas drogas nocivas. Todavia, não
investiam contra os homens, mas festejavam-nos,
erguendo-se sobre as patas e abanando as caudas.
Do mesmo modo que os cães cercam o dono,
quando este volta de um banquete, porque sempre
lhes traz bons petiscos, assim lobos e leões de fortes
garras cercavam os homens abanando as caudas”43
.
As pessoas encantadas comportam-se como os
animais selvagens que ouvem Orfeu tocar. A mítica
injunção a que sucumbem dá rédeas ao mesmo
tempo à liberdade neles reprimida. O que é
revogado em sua recaída no mito é ele próprio mito.
A repressão do instinto, a qual os transformou num
eu e os distinguiu do animal, era a introversão da
repressão no ciclo desesperadamente fechado da
natureza, a que alude, segundo uma concepção mais
antiga, o nome Circe. Em compensação, o violento
sortilégio que lhes recorda a proto-história
idealizada produz não só a animalidade, mas
também – como no idílio dos lotófagos – a ilusão da
reconciliação. Contudo, como já foram homens, a
epopeia civilizatória não sabe apresentar o que lhes
ocorreu a não ser como uma queda nefasta, e no
relato homérico mal se percebe sequer o vestígio do
prazer. Ele é expurgado com ênfase tanto maior
quanto mais civilizadas são as vítimas
sacrificadas.44 Os companheiros de Ulisses não se
transformam como os hóspedes anteriores nas
criaturas sagradas das regiões selvagens, mas em
animais domésticos impuros, porcos. Na história de
Circe insinua-se talvez a reminiscência do culto
ctônico de Deméter, para quem o porco era
sagrado.45 Mas talvez também seja a ideia de uma
semelhança entre a anatomia do porco e a do
homem e de sua nudez que explique esse motivo:
como se entre os jónios houvesse o mesmo tabu que
há entre os judeus acerca da mistura com os
semelhantes. Finalmente, pode-se pensar na
proibição do canibalismo, pois, como em Juvenal, o
sabor da carne humana é sempre descrito como
semelhante ao da carne de porco. Em todo caso,
todas as civilizações posteriores preferiram
qualificar de porcos aqueles cujo instinto buscava
um prazer diverso daquele que a sociedade sanciona
para seus fins. Magia e contramagia estão ligadas,
na metamorfose dos companheiros de Ulisses, a
ervas e ao vinho; à embriaguez e ao despertar, ao
43 Odisseia, loc. cit., 212 sgg.
44 Murray trata das “sexual expurgations” a que foram
submetidos os poemas homéricos no curso da redação (cf. op.
cit., pp. 141 sgg.).
45 “Os porcos são os animais sacrificiais de Deméter em
geral”. (Wilamowitz-Moellendorff. Der Glaube der Hellenen.
Vol. II, p. 53).
olfacto como o sentido cada vez mais reprimido e
recalcado e que mais próximo está tanto do sexo
quanto da lembrança dos tempos primitivos46. Mas,
na imagem do porco, o prazer do olfacto já está
desfigurado no fungar47 compulsivo de quem arrasta
o nariz pelo chão e renunciou ao andar erecto. É
como se a hetaira encantadora repetisse no ritual a
que submete os homens o ritual ao qual ela própria é
o tempo todo submetida pela sociedade patriarcal.
Igual a ela, as mulheres se inclinam, sob a pressão
da civilização, a adoptar o juízo civilizatório sobre a
mulher e a difamar o sexo. No debate do
esclarecimento e do mito, cujos vestígios a epopeia
ainda conserva, a poderosa sedutora já se mostra
fraca, obsoleta, vulnerável, e precisa dos animais
submissos por escolta48. Como representante da
natureza, a mulher tornou-se na sociedade burguesa
a imagem enigmática da sedução irresistível49 e da
impotência. Ela espelha assim para a dominação a
vã mentira que substitui a reconciliação pela
subjugação da natureza.
O casamento é a via média que a sociedade
segue para se acomodar a isso: a mulher continua a
ser impotente na medida em que o poder só lhe é
concedido pela mediação do homem. Isso já está,
até certo ponto, delineado na Odisseia com a derrota
da deusa hetaira, enquanto o casamento plenamente
configurado com Penélope, literariamente mais
recente, representa um estágio posterior da
objectividade da instituição patriarcal. Com a
conduta de Ulisses em Eéia50, a ambiguidade da
relação do homem com a mulher – desejo e
comando – já assume a forma de uma troca
garantida por contratos. A renúncia é o pressuposto
disso. Ulisses resiste à magia de Circe e assim
consegue aquilo que a magia só ilusoriamente
promete aos que não resistem a ela. Ulisses dorme
com ela. Antes porém faz com que profira o grande
juramento dos bem-aventurados, o juramento
olímpico. O juramento deve proteger o homem da
mutilação, da vingança para a proibição da
46 Cf. Freud, Das Unbehagen in der Kultur, em: Gesammelte
Werke, vol. XIV. Frankfurt am Main. 1968, p. 459, nota.
47 Uma das notas de Wilamowitz remete
surpreendentemente à conexão entre o conceito de “fungar” e
o conceito do noos [nous. cf. n. 5], isto é, da razão autónoma:
“Schwyzer ligou de maneira muito convincente noos com
bufar e fungar” (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des
Odysseus, p. 191). Wilamowitz contesta, é verdade, que o
parentesco etimológico dê alguma contribuição para o
significado.
48 Odisseia, X. 434.
49 A consciência da irresistibilidade exprimiu-se mais tarde
no culto de Afrodite Peithon [a persuasiva] “cuja magia não
tolera nenhuma recusa” (Wilamowitz-Moe11endorff. Der
Glaube der Hellenen. Vol. II, p. 152).
50 Eéia: a ilha de Circe. (N. do T.)
36
promiscuidade e para a dominação masculina, que,
no entanto, enquanto renúncia permanente ao
instinto, ainda realizam simbolicamente a
automutilação do homem. Aquele que resistiu a ela,
o senhor, o eu, e a quem Circe por causa de sua
imutabilidade censura por trazer “no peito um
coração insensível e obstinado”51 é aquele a quem
Circe se dispõe fazer as vontades: “Pois bem!
Guarda a espada e vamos logo para o nosso leito a
fim de que, unidos no leito e no amor, aprendamos a
confiar um no outro”52. Para o prazer que concede
ela estabelece como preço o desdém do prazer: a
última hetaira se afirma como o primeiro carácter
feminino. Na transição da lenda para a história, ela
faz uma contribuição decisiva para a frieza
burguesa. Seu comportamento pratica a proibição do
amor, que posteriormente se impôs tanto mais
poderosamente quanto mais o amor teve, enquanto
ideologia, de se prestar à tarefa de dissimular o ódio
dos competidores. No mundo da troca, quem está
errado é quem dá mais; o amante, porém, é sempre o
que ama mais. Ao mesmo tempo que seu sacrifício é
glorificado, zela-se ciumentamente para que o
amante não seja poupado do sacrifício. É
exactamente no amor que o amante fica sem razão e
é punido. A incapacidade de dominar a si mesmo e
aos outros, de que dá provas seu amor, é motivo
suficiente para lhe recusar satisfação. Com a
sociedade, reproduz-se de maneira amplificada a
solidão. Esse mecanismo prevalece até mesmo nas
mais ternas manifestações do sentimento, a tal ponto
que o próprio amor, a fim de abrir um caminho
qualquer até ao outro, é forçado a tamanha frieza
que se destrói com a própria realização. – A força de
Circe, que submete e reduz os homens à servidão,
converte-se na servidão do homem que, pela
renúncia, recusou a submissão. A influência sobre a
natureza, que o poeta atribui à deusa Circe, reduz-se
ao vaticínio sacerdotal e à prudente previsão de
futuras dificuldades náuticas. Tudo isso sobrevive
na caricatura da prudência feminina. As profecias da
feiticeira destituída de seus poderes sobre as Sereias,
Cila e Caríbdis só aproveitam, afinal, à
autoconservação masculina.
Quanto custou o preço pago pela instauração
de relações ordenadas para a reprodução sexual é o
que deixam apenas entrever os versos obscuros que
descrevem o comportamento dos amigos que Circe
reconverte em homens por ordem de seu senhor
contratual. Dizem primeiro: “Logo se
transformaram de novo em homens, mais jovens do
que haviam sido e também de aparência muito mais
51 Odisseia, X, 329.
52 Ibid., 333 sgg.
bela e aspecto muito mais nobre.”53 Mas os homens
assim confirmados e fortalecidos em sua
masculinidade não são felizes: “Todos estavam
tomados de uma melancolia agridoce e o palácio
ressoava com suas queixas.”54 Talvez tenha soado
assim o mais antigo hino nupcial, cantado para
acompanhar o banquete celebrando o casamento
primitivo que dura apenas um ano. O verdadeiro
casamento com Penélope tem mais em comum com
esse do que se poderia presumir. A prostituta e a
esposa são elementos complementares da autoalienação
da mulher no mundo patriarcal: a esposa
deixa transparecer prazer com a ordem fixa da vida
e da propriedade, enquanto a prostituta toma o que
os direitos de posse da esposa deixam livre e, como
sua secreta aliada, de novo o submete às relações de
posse, vendendo o prazer. Circe como Calipso, as
cortesãs, são apresentadas como diligentes teceloas,
exactamente como as potências míticas do destino55
e as donas-de-casa, ao passo que Penélope,
desconfiada como uma prostituta, examina o
retornado, perguntando-se se não é realmente
apenas um mendigo velho ou quem sabe um Deus
em busca de aventuras. Todavia, a famosa cena do
reconhecimento com Ulisses tem um carácter
verdadeiramente patrício: “Por muito tempo ela
sentou-se calada, pois o espanto tomava todo o seu
coração. Ora achava-o parecido, atentando em seu
rosto, ora de novo o desconhecia envolto em vis
andrajos.”56 Nenhuma emoção espontânea vem à
tona, pois não quer cometer nenhum erro, que de
mais a mais, sob a pressão da ordem que pesa sobre
ela, dificilmente se poderia permitir. O jovem
Telémaco, que ainda não se adaptou direito à sua
futura posição, irrita-se com isso, mas já se sente
homem o bastante para repreender a mãe. A censura
de teimosia e dureza que dirige a ela é exactamente
a mesma que Circe fizera antes a Ulisses. Se a
hetaira se apropria da ordem de valores patriarcal, a
esposa monogâmica não se contenta ela própria com
isso e não descansa enquanto não houver se
igualado ao carácter masculino. É assim que se
entendem os casados. O teste a que submete o
retornado tem por conteúdo a posição irremovível
do leito nupcial, que o esposo em sua juventude
havia construído em torno de uma oliveira, símbolo
da unidade do sexo e da propriedade. Com uma
astúcia tocante ela fala como se essa cama pudesse
ser tirada do lugar, e “zangado” o esposo respondelhe
com a narrativa circunstanciada da obra de seu
duradouro artesanato: como protótipo do burguês
53 Ibid., 395 sg.
54 Ibid., 398 sg.
55 Cf. Bauer, op. cit., p. 49.
56 Odisseia, XXIII, 93 sgg.
37
vivo e habilidoso que é, ele tem um hobby. O hobby
consiste na repetição do trabalho artesanal, do qual
– no quadro de relações de propriedade – está
necessariamente excluído há muito tempo. Ele se
compraz nele porque a liberdade de fazer o que para
ele é supérfluo confirma seu poder de dispor sobre
aqueles que têm que realizar tais trabalhos para
viver. É nisso que o reconhece a engenhosa
Penélope, que o lisonjeia com o louvor de sua
excepcional inteligência. Mas à lisonja, que já
contém uma dose de escárnio, juntam-se – numa
súbita cesura que interrompe o discurso – as
palavras que buscam a razão de todo o sofrimento
dos esposos na inveja dos deuses pela felicidade que
só é garantida pelo casamento, os “pensamentos
confirmados da permanência”57: “Os imortais nos
cumularam de desgraças, achando demais que
desfrutássemos juntos e em paz de nossa juventude
e que suavemente nos aproximássemos da
velhice”.58 O casamento não significa apenas a
ordenação da vida segundo relações de
reciprocidade, mas também a solidariedade diante
da morte. Nele a reconciliação cresce em torno da
submissão, assim como, em toda a história até
agora, o humano só floresceu sobre a barbárie que a
humanidade justamente oculta. Se o contrato entre
os esposos não faz senão redimir penosamente uma
hostilidade antiquíssima, os que envelhecem
pacificamente se esvaem na imagem de Filémon e
Baucis, assim como a fumaça do altar sacrificial se
transforma na fumaça salutar da lareira. O
casamento pertence certamente à rocha primeira do
mito na base da civilização. Mas sua mítica dureza e
solidez emerge do mito assim como o pequeno reino
insular do mar infinito.
A última etapa da viagem de erros
propriamente dita não é nenhum refúgio dessa
espécie. É o Hades. As figuras que o aventureiro
enxerga na primeira nekyia59 são antes de mais nada
as imagens matriarcais60 banidas pela religião da
luz: depois da própria mãe, diante de quem Ulisses
se força a assumir a atitude patriarcal de uma
conveniente dureza61, vêm as heroínas
antiquíssimas. Contudo, a imagem da mãe é
impotente, cega e muda62, a imagem de uma
57 Goethe, Wilhelm Meisters Lehrjahre. Jubiläumsausgabe.
Stuttgart e Berlim. Vol. I, cap. 16, p. 70.
58 Odisseia, XXIII, 210 sgg.
59 Sacrifício aos mortos. (N. do T.)
60 Cf. Thomson. op. cit., p. 28.
61 “Ao vê-la, meus olhos marejaram e lamentei de todo
coração. Contudo. proibi a ela também, embora cheio de
íntima melancolia, que se aproximasse do sangue antes que eu
interrogasse Tirésias” (Odisseia, XI, 87 sgg.).
62 “Vejo aí a alma de minha defunta mãe, mas ela se mantém
muda junto à poça de sangue e não se atreve a olhar para o
alucinação como a própria narrativa épica nos
momentos em que abandona a linguagem à imagem.
É preciso do sangue sacrificado como penhor de
uma lembrança viva para dar fala à imagem, para
que esta, ainda que em vão e efemeramente, se
arranque à mudez mítica. É só quando se torna
senhora de si no reconhecimento da inanidade das
imagens que a subjectividade chega a participar da
esperança que as imagens prometem em vão. A terra
prometida de Ulisses não é o reino arcaico das
imagens. Todas as imagens, enquanto sombras no
mundo dos mortos, acabam por lhe revelar sua
verdadeira essência, a aparência. Ele se livra delas
depois de tê-las reconhecido como mortas e de tê-las
afastado, com o gesto imperioso da
autoconservação, do sacrifício que só oferece a
quem lhe concede um saber útil para sua vida, na
qual o poder do mito só continua a se afirmar como
imaginação transposta para o espírito. O reino dos
mortos, onde se reúnem os mitos destituídos de seu
poder, é o ponto mais distante da terra natal, e é só
na mais extrema distância que ele se comunica com
ela. Se seguirmos Kirchhoff na hipótese de que a
visita de Ulisses ao inferno pertence à camada mais
antiga, propriamente lendária da epopeia63, é aí
também que encontramos o traço que – assim como
na tradição das descidas de Orfeu e Hércules ao
inferno – mais nitidamente se destaca do mito, pois
o motivo do arrombamento das portas do inferno, da
supressão da morte, constitui o núcleo de todo
pensamento antimitológico. Este elemento
antimitológico está contido no vaticínio de Tirésias
sobre a possível reconciliação de Posseidon. Ulisses
há de errar, com um remo sobre o ombro, até
alcançar os homens “que não conhecem o mar e
jamais provaram comida temperada com sal”64
.
Quando encontrar um viandante e este lhe disser que
está carregando uma pá sobre os ‘ombros, terá
atingido o lugar certo para oferecer a Posseidon o
sacrifício reconciliador. O ponto central do vaticínio
é o equívoco do remo pela pá, que deve ter parecido
enormemente cómico ao Jónio. Mas essa
comicidade, de que depende a reconciliação, não
pode estar destinada aos homens, mas à ira de
próprio filho nem a proferir qualquer palavra. Diz, senhor, o
que fazer, para que ela me reconheça como filho” (ibid., 141
sgg.).
63 “Não posso deixar de considerar todo o livro 11, com
excepção de algumas passagens... como um fragmento do
velho nostos, que foi apenas deslocado; seria assim a parte
mais antiga do poema” (Kirchhoff, Die homerische Odyssee.
Berlim, 1879, p. 226). – “Whatever else is original in the myth
of Odysseus, the Visit to Death is” [“se alguma coisa é original
no mito de Ulisses, a Visita à Morte é uma delas”] (Thomson,
op. cit., p. 95).
64 Odisseia, XI, 122 sg.
38
Posseidon.65 O equívoco deve fazer rir o colérico
deus elementar, para que em sua gargalhada a raiva
se dissipe. Encontramos uma situação análoga em
um dos contos dos irmãos Grimm com o conselho
que a vizinha dá à mãe sobre como se livrar da
figura monstruosa que substituíram a seu filho
recém-nascido: “Disse a ela que levasse o monstro
para a cozinha, o colocasse sobre o fogão, acendesse
o fogo e pusesse água a ferver em duas cascas de
ovo: isso faria o monstro rir e, quando risse, ele
estaria acabado.”66 Se o riso é até hoje o sinal da
violência, o prorrompimento de uma natureza cega e
insensível, ele não deixa de conter o elemento
contrário: com o riso. a natureza cega toma
consciência de si mesma enquanto tal e se priva
assim da violência destruidora. Esse duplo sentido
do riso está próximo do duplo sentido do nome, e
talvez os nomes nada mais sejam do que risadas
petrificadas, assim como ainda hoje os apelidos, os
únicos nos quais perdura ainda algo do acto
originário da denominação. O riso está ligado à
culpa da subjectividade, mas, na suspensão do
direito que ele anuncia, também aponta para além da
servidão. Ele promete o caminho para a pátria. É a
saudade de casa que desfecha as aventuras por meio
das quais a subjectividade (cuja proto-história é
narrada pela Odisseia) escapa ao mundo primitivo.
O facto de que o conceito de pátria se opõe ao mito
(que a mentira fascista quer transformar na pátria)
constitui o paradoxo mais profundo da epopeia. É aí
que se encontra sedimentada a lembrança da
passagem histórica da vida nomádica à vida
sedentária, que é o pressuposto da existência de
qualquer pátria. Se é na ordem fixa da propriedade
dada com a vida sedentária, que se origina a
alienação dos homens, de onde nasce a nostalgia e a
saudade do estado originário perdido, é também na
vida sedentária, em compensação, e na propriedade
fixa apenas que se forma o conceito da pátria,
65 Ele era originariamente o “esposo da Terra” (cf.
Wilamowitz, Glaube der Hellenen, vol. I, pp. 112 sgg.) e só
mais tarde tomou-se o deus do mar. A profecia de Tirésias
pode aludir à sua essência dual. É concebível que sua
reconciliação por meio de um sacrifício terreno, longe do mar,
se baseie na restauração simbólica de sua potência ctónica.
Essa restauração exprime possivelmente a substituição da
pirataria pela agricultura; os cultos de Posseidon e Deméter se
confundiram (cf. Thomson, op. cit, p. 96 n.).
66 Irmãos Grimm, Kinder und Hausmärchen, Leipzig, s.d., p.
208. Há temas intimamente aparentados a esse que remontam à
antiguidade, ligados aliás a Deméter. Quando esta chegou a
Elêusis, “em busca de sua filha raptada”, encontrou “acolhida
junto de Dysaules e sua mulher Baubo, mas recusou-se em sua
profunda tristeza a tocar em comida ou bebida. Então sua
hospedeira Baubo fez com que ela risse, levantando de repente
a roupa e descobrindo o corpo” (Freud, Gesammelte Werke,
vol. X. p. 399. Cf. Salomon Reinach, Cultes, Mythes et
Religions. Paris, 1911, vol. IV, pp. 115 sgg.).
objecto de toda nostalgia e saudade. A definição de
Novalis segundo a qual toda filosofia é nostalgia só
é correcta se a nostalgia não se resolve no fantasma
de um antiquíssimo estado perdido, mas representa a
pátria, a própria natureza, como algo de extraído ao
mito. A pátria é o estado de quem escapou. Por isso
a censura feita às lendas homéricas de “se afastarem
da terra” é a garantia de sua verdade. “Elas voltamse
para a humanidade.”67 A transposição dos mitos
para o romance, tal como ocorre na narrativa das
aventuras, é menos uma falsificação dos mitos do
que um meio de arrastar o mito para dentro do
tempo, descobrindo o abismo que o separa da pátria
e da reconciliação. Terrível é a vingança que a
civilização praticou contra o mundo pré-histórico, e
nisso ela se assemelha à pré-história, como se pode
ver em seu mais atroz documento em Homero: o
relato da mutilação do pastor de cabras Melântio. O
que a eleva acima do mundo pré-histórico não é o
conteúdo dos crimes relatados. É a tomada de
consciência que faz com que a violência se
interrompa no momento da narrativa. A própria fala,
a linguagem em sua oposição ao canto mítico, a
possibilidade de fixar na memória a desgraça
ocorrida, é a lei da fuga em Homero. Não é à toa
que o herói que escapa é sempre reintroduzido como
narrador. É a fria distância da narrativa que, ao
apresentar as atrocidades como algo destinado ao
entretenimento, permite ao mesmo tempo destacar a
atrocidade que, na canção, se confunde solenemente
como destino. Mas a interrupção da fala é a cesura,
a transformação dos factos relatados em
acontecimentos de um passado remoto, que faz
cintilar a aparência da liberdade que, desde então, a
civilização não extinguiu mais por inteiro. No canto
XXII da Odisseia, descreve-se a punição infligida
pelo filho de Ulisses nas servas infiéis que haviam
recaído na condição de hetairas. Com frieza e
serenidade, com uma impassibilidade inumana e só
igualada pelos grandes narradores do século
dezanove, Homero descreve a sorte das enforcadas e
compara-a sem comentários à morte dos pássaros no
laço, calando-se num silêncio que é o verdadeiro
resto de toda fala. A passagem termina com o verso
que descreve como as mulheres enforcadas em
fileira “debateram-se um pouco com os pés, mas
não por muito tempo”68. A precisão com que o autor
descreve o facto e que já tem alguma coisa da frieza
da anatomia e da vivissecção69 faz do relato uma
67 Hölderlin, Der Herbst. op. cit., p. 1066.
68 Odisseia, XXII, 473.
69 Wilamowitz é de opinião que a punição “foi narrada
prazerosamente pelo poeta” (Die Heimkehr des Odysseus, p.
67) .Mas, como o autoritário filólogo se entusiasma com a
metáfora da armadilha de pássaros porque “descreve de
maneira precisa e… muito moderna como ficam a balouçar os
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acta romanceada dos espasmos das mulheres
submetidas que, sob o signo do direito e da lei, são
arrastadas para o reino de onde escapou o juiz
Ulisses. Como um cidadão meditando sobre a
execução, Homero consola-se a si mesmo e aos
ouvintes, que são na verdade leitores, com a
constatação tranquilizadora de que não durou muito:
um instante e tudo se acabou70. Mas, após o “não
por muito tempo”, o fluxo interno da narrativa
estanca. Não por muito tempo? pergunta o gesto do
narrador e desmente sua serenidade. Interrompendo
o relato, ele nos impede de esquecer as mulheres
executadas e revela o inominável e eterno tormento
daquele único segundo durante o qual as servas
lutam com a morte. O único eco desse “não por
muito tempo” que subsiste é aquele “quo usque
tandem”71 que os retores da época posteriores
inadvertidamente profanaram ao se atribuírem a si
mesmos a paciência. Mas, no relato do crime, resta
uma esperança, que se prende ao facto de ter
ocorrido há muito tempo. Homero ergue sua voz
consoladora sobre essa mistura inextricável da pré-
história, da barbárie e da cultura recorrendo ao “era
uma vez”. É só como romance que a epopeia se
transforma em conto de fadas